Ignomínia

Leonardo Passovi
Revista Mormaço
Published in
40 min readAug 1, 2022
Fifa Fan Fest, Recife; Imagem meramente ilustrativa

Na hora de fazer qualquer decisão importante, qualquer compra de grande porte, como uma viagem cara, por exemplo, as variáveis têm que ser analisadas e revisadas com antecedência. Assim, evita-se o que o mundo corporativo chama de “dissonância cognitiva”, que nada mais é do que uma expressão desnecessariamente complicada pro famigerado arrependimento.

Agora você imagine a cara dos turistas que compraram pacotes da Copa do Mundo quando descobriram que, no Catar, fazer sexo sem estar casado é passível de pena de 7 anos de reclusão. Álcool não é proibido de todo, mas o consumo fica restrito a certos locais. E o preço da cerveja costuma variar na equivalência de R$60,00 a R$84,00. Ficar bêbado na rua também lhe leva pro xilindró, então nem comece.

Os navios de petróleo realmente movem as águas, e não o contrário. De quem será que foi a ideia de colocar o maior evento festivo do planeta num dos poucos lugares em que é proibido ficar doidão? Num cafundó em que você literalmente vai preso se transar com alguém? A opinião ferina, mas nem por isso inexata, de um rapaz que pegou elevador comigo num prédio comercial, aponta como culpado “algum daqueles cartolas, gordo e brocha, que não come ninguém e não queria ficar na punheta sozinho”.

Tomara que esse cidadão não vá pra Copa, porque site pornográfico lá é tudo bloqueado. Pelo menos nessa, foi possível prevenir ao invés de remediar. Já pensou se não? Imagine só o poder coercitivo do estado flagrando um infrator com a mão na massa, pra arrastar o tratante pro cárcere. Calças no tornozelo; o encarregado ordenando que o criminoso abaixe a arma; a disputa pra decidir quem põe a algema no infeliz; e, na van, o nerd hacker responsável pelo rastreamento numa mistura de satisfação e constrangimento.

Só que na Fan Fest pode. Não a punheta. Nem o sexo. Mas pode beber. Não é nenhum 3 por 5 (que hoje já virou 3 por 10), mas é um pouco menos abusivo do que sessenta reais. É como se fosse um cercadinho da discórdia e da libertinagem patrocinado pela FIFA e outras grandes corporações. Certos ambientes permitem que a pessoa se comporte um pouquinho pior. Normalmente esses ambientes contemplam pelo menos 4 ou 5 dos itens abaixo:

  • iluminação (propositadamente) precária
  • aglomerações
  • consumo de substâncias
  • sudorese
  • futebol
  • isopor

E a Fan Fest praticamente gabarita essa prova. Deixando a desejar talvez na parte da iluminação, o que é bastante grave, já que ninguém é bonito quando tá torcendo suado, doidão, do lado de um isopor. Quem sobreviveu à Copa de 2014 entende bem do que eu tô falando. Pré-catástrofe, as memórias são das mais belas. Telão gigante com o volume no talo, e ninguém ouvindo direito; duas cervejas na mesma mão, uma em cima da outra, porque tinha que pegar na promoção todas de vez, e aí vai esquentando; 29ºC no inverno; regatinha, óculos escuros, camisa alternativa da seleção (quem paga mais de 300 é o coelho); ambulante gritando; gringo atordoado; Márcio Canuto em estado de graça; boneco de Olinda de Galvão e Casagrande cutucando fiofó de distraído; sua tia inventou que queria ver o jogo “junto do povão”; checada nos bolsos de 5 em 5 minutos; se o Brasil não ganha, é aquela mesma multidão, só que todo mundo puto, vários celulares subtraídos; se o Brasil faz gol, durante alguns segundos ninguém se preocupa ou sequer lembra onde ou com quem está; tudo vai aos ares; nada fica em seu lugar quando a bola passa debaixo do travessão.

Foi numa versão distorcida e arábica disso daí que Catarina resolveu se encafuar. Tava com umas amigas, inicialmente, mas bebeu suficientemente antes do jogo pra começar a achar elas todas estranhas e idiotas. Fingiu que se perdeu e colou junto de uns perturbado que tavam azucrinando um ambulante. Nesses eventos, a FIFA costuma tentar alguma arte pra “organizar”, fazendo comprar ficha ao invés de comprar a bebida direto. Nunca dá certo. Ninguém lembra de comprar mais ficha a partir da segunda rodada de cerveja, e ninguém quer pegar duas filas.

Pra Catarina, aquilo era divertido porque ela lembrava o motivo pelo qual ela resolveu comprar aquele diabo daquela viagem. Quatro anos antes, logo na estreia entre Brasil x Suiça (jogo que acabou empatado, portanto, multidão puta na frente do telão), ela se engraçou com um Francês pra não mais soltar. O elemento, primeiro pirraçado, virou pirracento, e se juntou com nativos tupiniquins pra prejudicar o sossego de um ambulante daqueles que anda com carrinho de café, cravinho, príncipe maluco e otras cositas mas, tocando um som infernal numa caixinha de luzes coloridas. Ninguém acreditava que o rolo do francês com a brasileira fosse durar a Copa da Rússia toda. Tivesse o Brasil ganhado da Bélgica, as duas seleções iam se enfrentar, e aí talvez o romance balançasse, dado o atrevimento do gringo. Mas não aconteceu.

O que aconteceu foi que os franceses deram uma aula de como comemorar um título. O dito cujo ficou foi muito doido, subiu numa placa, tentou tacar fogo num carro — costume muito difundido na terra do croissant — , foi preso e nunca mais deu as caras.

Depois da eleição, em outubro de 2018, com as esperanças bastante minguadas em relação ao cenário nacional, Catarina botou pilha nas amigas de que elas tinham que viajar mais, conhecer o mundo, pirraçar gringos em outros lugares além do Farol da Barra. Em 10 minutos de conversa, já estavam olhando pacotes de viagem pro Catar. Teve até uma que sugeriu uma tal de promoção de Luciano Huck, mas você já sabe como é. Faltou oxigênio pra essa ideia.

Some-se a isso pandemia, ansiedade, confusão, remédio, maconha, vodka, uma viagem pro Beach Park, tentativas fracassadas de ler existencialismo francês, sono invertido, gastrite, três empregos em dois anos, faculdade trancada e alguns bate-bocas nas ceias de Natal. Do nada, já era ano de Copa de Mundo de novo. Só de pensar, ela esfregava as mãos uma na outra como uma mosquinha elaborando um plano maligno em cima de uma cacho de banana. Pirraçar os gringo.

Foi ela, Amanda, Bruna e eu me esqueci o nome da outra. E isso vai importar muito na história. As três fadas estavam paradas no mesmo lugar já tinha um tempo e nem lembravam mais porquê. Não tinha muito a se fazer. O melhor jogo do dia tinha sido Inglaterra x Estados Unidos. Amanda, que era cheia de vontade e não tinha uma gota de paciência, falou que queria mais cerveja. Depois de meia dúzia de frases não muito conexas trocadas entre as três, chegaram à conclusão que já tinham comprado as fichas, mas não tava com nenhuma das três. A que não era nem Amanda nem Bruna foi quem resolveu o mistério. Aí Amanda virou pra ela e falou assim:

— Sim, … é …, e cadê Catarina, você sabe?

Catarina uma hora dessa já se lambia em alta com um bicho grilo cheio de ideia torta lá do outro lado da muvuca. Henrique, o nome dele. Queixou ela com um papo de que contagem de sílaba tem a ver com o número de vogais, e que, por isso, o nome deles dois tinha o mesmo número de sílabas. Ela disse que ele tava falando merda e eles começaram a se pegar. É assim que as pessoas ficam na Fan Fest, pra você que nunca foi. Só que normalmente envolve mais de um idioma. De preferência, híbridos, como o portunhol. Sem dúvida a língua mais falada em Junho de 2014 no Brasil.

Cinco minutos a mais de chupação, foram pro hotel. Levando as fichas das cervejas todas e deixando as meninas ao léu. A divisão dos quartos era Amanda e Bruna em um, Catarina e essa menina em outro. A menina ia ter que mergulhar no sofá cama do quarto das outras duas, porque naquela noite não teve vez. Catarina chegou lá, trancou a porta e ficou convenientemente surda até o dia seguinte. Henrique tinha se hospedado no mesmo hotel, mas só descobriu que era o mesmo quando chegaram lá, então nem falou nada.

Passarinhos cantando na janela, vuvuzelas berrando nas ruas, dedinhos afoitos roçando as pequenas telas, Cléber Machado enrolando nomes de jogadores árabes, pancadas violentas na porta. Catarina abriu e não viu ninguém no corredor.

— Fecha isso aí, menina! Tá maluca?! — Henrique muito dócil, com metade da cara enfiada no travesseiro.

Antes que ela processasse o porquê de ele ter dito aquilo, muito menos daquela forma, as batidas continuaram. Aí ela descobriu que os quartos dela e das amigas eram conjugados, e tinham uma porta interna que ligava os dois. Quando ela abriu, tavam Bruna e Amanda catando os cacos de si que o MD deixou elas catarem, e a outra menina em pé, plantada na frente da porta, desaforada, como se tivesse peito pra tanto. Sua irritação se estampava na sobrancelha franzida e na respiração ofegante. Reclamar, reclamar mesmo não era muito o perfil dela. O timbre de sua voz era tão pouco expressivo que nem Bruna, que era chegada numa imitação, saberia reproduzir de cor.

Falou que tinha que pegar as coisas dela, que tava imunda e quebrada da noite mal dormida. Toda descabelada, entrou no quarto enquanto Catarina ainda se dividia entre tentar responder e olhar as outras duas zumbis perambulando sem propósito dentro do quarto de lá. Todo mundo puto com todo mundo e ninguém nem sabia direito o porquê.

Essa menina tomou um susto quando entrou, que deu um grito:

— TEM UM HOMEM AQUI, CATA… — Foi que Henrique deu um pulo e tapou a boca da menina.

— Vocês tão tudo doida é velho? Querem que a gente seja preso?

E aí foi todo mundo se tocando aos poucos da merda que eles tinham feito, caso alguém tenha visto. E sucedeu-se um fabuloso brainstorming de formas de tirar ele do quarto sem ser visto e descobrir se a barra da noite anterior tava limpa. Polônia x Arábia Saudita comendo no centro enquanto isso. Ele olhou e não respondeu quando Amanda falou “Thiago, desliga esse negócio, a gente tá tentando pensar”.

Vou resumir e anunciar logo que a melhor ideia foi vestir Henrique numa burca pra ele sair do quarto. Pelo menos essa foi a minha favorita. A colega de quarto de Catarina tinha levado uma burca, só pra ser temática. O problema seria uma suposta mulher casta entrando num quarto de macho na surdina. Mas isso é problema de Thiago, segundo Amanda. Não fosse por MC Kevin, essa pérola de ideia teria sido descartada por uma tentativa desastrada, indiscreta e pouco criativa de passear pela fachada externa do hotel.

Enquanto isso, elas tinham que descobrir também se alguém tinha visto alguma coisa que não devia. Catarina lembrava que a moça da recepção tinha sido super simpática e adorável com ela. Tanto que ela quase cogitou que fosse mais do que só cortesia. Mas logo descartou a ideia, lembrando em que país estavam. E que lá é proibido também ser homossexual. Engraçado que é a segunda vez seguida que a Copa do Mundo é sediada num país que prevê isso na legislação. Coerência é tudo, e isso ninguém pode dizer que a FIFA não tem.

Bruna foi no saguão do hotel conferir se quem estava no balcão era a dita cuja amigável. De lá, mandou um áudio imitando em inglês o sotaque sinuoso e sugestivo da recepcionista, confirmando que era ela e o dando o sinal pra que Catarina ligasse e desse um jeito de ter acesso às filmagens ou qualquer coisa que desse uma ideia de se eles tinham sido flagrados ou se a barra estava limpa. Falou com a moça. Era algum nome árabe começando com A. Duas sílabas, por aí. Se embananando toda nas ideias e nos idiomas, Catarina se entregou completamente, e “A.” ganhou ela em dois tempos.

Acontece que ela era sim lésbica. E não tão gente boa quanto interessada. Tinha apenas posto o véu transparente da cordialidade sobre suas verdadeiras intenções iniciais. Não queria se colocar e nem colocar uma hóspede em apuros. Mas agora, vendo que a hóspede já estava em apuros por si só, e confirmando nas câmeras que tinha provas disso, seus olhos brilharam. Cinicamente, deu o ok a Catarina:

— Yes, we can se you and your husband coming back to your room. I mean, he is your husband, right?

De início num impulso, mas se arrependendo enquanto falava, Catarina respondeu:

— Yes, he is.

Agora faltava avisar ao maridão. Passando um Hipoglós na junta da coxa pra curar as assaduras, porque tinha ido de sunga pra Fan Fest no dia anterior, Henrique não sabia que ainda ia entrar chumbo muito mais grosso. Mas foi o seu lado tirado a engraçado que atendeu o telefone, com a mão toda melada, e resolveu de pronto que ia abraçar a ideia. Pensaram numa desculpa pro fato de terem ficado em quartos separados, ele tinha que avisar a cada um dos amigos e ambos teriam que refazer diversos planos a fim de sustentar aquela pantomima. Teriam que ir fundo nas personagens.

Fundo foi o suspiro de Catarina quando Henrique encontrou ela no corredor e falou, em alto e bom som:

— Amorzão! Vamo logo!

Deram os braços e lá se foram. Ainda não tinham acertado de todo os limites da brincadeira. Mas logo viram, na curvatura altiva, inquisidora da sobrancelha de A., que teriam que estender em mais alguns quilômetros as cercanias do engodo. Catarina não ia se fazer de rogada, então já deu o pontapé inicial do diálogo:

Lovely day, today, isn’t it?

I know, right? — respondeu A. com animação suspeita.

Meia dúzia de frases de um small talk típico se seguiram. O desconforto ia ficando mais evidente. Deleitando-se a cada contorcida da alma da jovem turista, a recepcionista provocava:

What will be today’s adventure for the young newlyweds?

Henrique se prontificou a entrar na dança:

Oh, no! We’ve been married for almost three years now. See, we had no time to waste.

Isso pegou a atrevida de surpresa. Ainda assim, não a convenceu. Disposta a fazer de fio dental as cordas das marionetes em suas mãos, A. começou a sugerir passeios ao casal. Os mais desafiantes possíveis às pilastras de vidro do castelinho que eles levantavam em pleno Oriente Médio. Praticamente os obrigou a ir em um, em particular, “brincando” que ia ligar pro guia pra perguntar se eles foram e gostaram. Eles não quiseram descobrir como terminava essa brincadeira, procuraram alguma coisa bem convencional na qual a mente deles pudesse descansar enquanto planejavam os próximo passos.

Nem lubrificar os pensamentos com cerveja eles não podiam. Fan Fest não é lugar de fazer planos. Saindo do hotel, Catarina externou sua preocupação com as ideias tortas da recepcionista. Pra que aquilo? Onde ela queria chegar? O que ela tinha a ganhar? Que tipo de gente se diverte com o desespero dos outros? Será que ela era psicopata? Não é paranoia, né? Dava pra ver que ela sabia. Dava pra ver que ela fazia de propósito, pra ver se a atuação fraquejava, se alguma fresta deixava ver que era mentira. Dava, não dava?

Henrique jamais teria percebido se Catarina não falasse. O comprometimento dele era genuíno. Não era movido por uma iminente ameaça específica. Ele apenas estava disposto a atuar o tempo todo. Ele talvez estivesse se divertindo bem mais do que A. Mas ele não percebia isso ainda tão claramente. Seu raciocínio seguia o caminho de reforçar a aparência de que eram casados, e não tanto o de evitar que fossem pegos. Não via tanto como um problema quanto como uma brincadeira esquisita e inesperada. As mentes mais simples são realmente invejáveis. As sobrancelhas de Catarina, enquanto isso, quase se atavam num nó, de tão franzidas.

Ela jamais suspeitaria que a aparente crueldade de A. era fruto de um ressentimento generalizado para com o mundo e especialmente com o lugar ingrato onde ela foi obrigada a nascer. Se ela não podia ser quem era, então quem quer que ela pudesse atrapalhar, ela iria. Toda chance era aproveitada. Sim, ela salivou quando viu pela primeira vez o colo rosado de Catarina meio exposto pela blusa de botão. Enquanto ainda atendendo a hóspede que estava primeiro na fila, observava o formato do queixo da brasileira, a pele do pescoço, os lábios nem tão finos nem tão grossos, mas de aparência muito macia.

Meia abertura de Catarina, e ela teria se arriscado. Já tinha se arriscado antes. Sua antiga chefe, concierge do hotel, bagunçou sua cabeça durante meses. Ir pro trabalho era um pesadelo, uma tentação. Horas e horas entre registros, cadastros, pedidos, reservas, escapadas imaginárias prum armário de vassouras, uma escada de incêndio, um cubículo qualquer. A temperatura subindo no couro do banquinho alto que ela sentava. Fazia muito mal pras costas. Mas nem que fosse numa poltrona, ela não relaxaria. A inquietude tinha tomado conta. Sua pélvis era uma arquibancada em final de Copa.

A paz veio a contragosto. A concierge se escafedeu com um qualquer, dando ordens expressas pra A. nunca mais procurar por ela na vida. Ameaçou denunciá-la por “homossexualismo” caso ela ensaiasse qualquer tipo de abordagem. Mensagens, e-mails, cartas, visitas, tudo seria uma prova contra si. Expressar o amor que sentia poderia significar seu fim. Existem pessoas para quem a experiência amorosa é apresentada de maneira paupérrima. Coitados que jamais suspeitam o quão esplendoroso pode ser o amor.

Jamais deve-se duvidar do poder de transformação que um coração partido tem numa pessoa. Uma mente sã perde a razão, uma alma pura se enxarca de maldade, uma menina alegre fica séria, um homem torto se endireita. A. se resignou ao silêncio. Não só pelo bem da sua liberdade de ir e vir, mas como uma maneira de manter as coisas vivas dentro dela, em forma de ilusão. Acontece que ilusão é que nem fruta. Se ficar guardada muito tempo, apodrece e vira um negócio horroroso. Se transforma num antro de proliferação de coisas nocivas. Num ecossistema tóxico. E Catarina, coitada, era uma chance de A. se vingar de si mesma. Ela se odiava por ter deixado as coisas chegarem àquele ponto. Ninguém teria uma ideia dessas sem se odiar.

Mas antes o problema fosse só A. Seria mais fácil. O problema era tudo. Estava em toda parte. Pessoas viram e viriam e veriam. Uma sensação de asfixia se sobrepunha ao arrependimento, que nem falava mais tão alto. Ir pra outra cidade talvez solucionasse o problema. Mas o dinheiro estava escasso, e ela teria que convencer as outras três, e Amanda não ia querer arruinar toda uma viagem planejada só porque Catarina fez merda por causa de macho. E não saber o que fazer piorava tudo. Deixava ela com raiva.

De repente, ela encontrou um bom foco pra todo aquele amargor, toda aquela consumição: Henrique. O imbecil estava claramente nas nuvens. Não movia uma palha, não falava nada. Tudo bem que ela também não surgiu com nenhuma grande ideia, mas pelo menos ela se preocupava com a situação. Ela estava angustiada. Ele, por ele, tava ótimo. Não tava nem aí. Acha o que? Que ela foi pra lá pra se submeter a uma palhaçada dessa?

A gota d’água foi no almoço. Ela lá cutucando a comida com o garfo como se fosse o cadáver de um sapo na mesa do laboratório do ensino médio, tomou um susto quando ele se indignou com algum lance que aconteceu no jogo entre França e Dinamarca.

— Você tá assistindo o jogo? Eu não acredito. Meu filho, você não se tocou do que tá acontecendo aqui não? A gente vai ter que fingir que é casado! Ca-sa-do! Pela Copa do Mundo inteira. Cê sabe aonde a gente tá? Eu não quero ir pra cadeia! Se alguém descobrir isso, acabou! Acabou tudo! A gente tá fudido! A gente, não. Eu to fudida, porque sou obrigada, agora, a ficar pra cima e pra baixo grudada com você! Como se eu fosse me casar com VOCÊ! Eu aqui pensando em como lidar com isso de maneira que eu SOFRA menos e você assistindo JOGO!?

Dois minutos depois:

— É. Eu vim aqui pra assistir jogo. A viagem é pra isso. Você queria o que? — ele respondeu.

Silêncio e indignação do lado de lá.

— Mas fique tranquila. Esse seu faniquito deixa tudo mais realista. Agora a gente tem pelo menos umas 50 testemunhas de que a gente é casado. E muito bem casado! Casadíssimo…

O dia foi curto. Já tinham acordado tarde, de ressaca, cabeça mal funcionava direito. Relógio biológico ainda com o fuso do Brasil. O sol desceu rápido, voltaram pro hotel cedo, evitaram contato com quem quer que fosse, foram pro quarto dela soltar as algemas imaginárias, e ele desceria pro dele pela escada, a fim de ser visto pelo mínimo de pessoas possível. Cansados como estavam, sabiam que aquilo deveria estar só começando.

Ao longo do torneio, algum tipo de normalidade ou padrão foi se estabelecendo entre os dois. Ainda se bicavam de vez em quando, porque também, pudera, né. É nessas que você descobre o tipo de gente duvidosa que a gente pega nessas festas que sai lambendo língua por aí sem meio palmo de conversa antes. Quanta vergonha pode ser evitada se alguns centavos de ideia forem trocados antes da afobação. Não só por causa da própria pessoa em si, mas todo o contexto no entorno.

Bem que dizem que casar com alguém é casar com os amigos e a família da pessoa. Lá estavam Henrique e Catarina na área da piscina do hotel, quando ele arregala os olhos diante da aproximação de um grupo de rapazes. Eram só uns três ou quatro, mas davam a impressão de ser de 7 pra lá.

— Puta que pariu — soltou Henrique.

— O que foi? Eu achei que você tinha avisado a seus amigos.

— Eu avisei, mas eles verem é outra coisa. Você não conhece esses caras.

Não adiantava disfarçar, evitar contato visual, afundar a cara no cardápio. A tropa já tinha visto. Talvez pulando na piscina, porque aquilo seria inesperado até pra eles. Mas isso estava fora de cogitação. Já era. Se correr, o bicho come, se ficar… é aquela expressão mesmo, foda-se.

Já vieram gritando de lá:

— E aí, marido?? Cadê você que não aparece mais pra nada?

— Vida de casado é foda, porra! O cara some, esquece as amizades!

— E tá sempre cansado, olha a cara dele de cansado. É o bagaço ou as crianças?

— É com você mesmo! Não adianta olhar pra lá, não! Quando a tropa chega, ninguém escapa.

— E venha cá, não vai apresentar as amigas da noivinha pra seus broder, não é?!

— Pela cara dela, nem jogo do Brasil eles tão vendo. E aí, esposinha, não vai cumprimentar os amigos de seu marido, não?

— Olhe velho, vocês dois fiquem aí com essa cara de vocês, casalzinho, que a gente vai ver o jogo da Alemanha. Qualquer coisa, vem de zap, viu, cabrunco?

Silêncio completo do casal durante toda a interação. A tropa bate em retirada.

— Então é assim que você é… — Catarina foi constatando.

— Pra você ver o tipo de elemento que eu tenho aturar.

— Oxe, mas não são seus amigos? Ou você é o emburradinho da tropa?

— Até que não. Mas sabe como é. Depois que o cara casa, ele amadurece um pouco.

Incredulidade estampada na cara de Catarina por alguns segundos. Por mais que seja previsível um rapaz se constranger quando na presença dos amigos e de alguém que pegou, alguma personalidade ele mostrou. Algum espírito. Tem senso de humor o maldito. Isso deu uma leve lubrificada nas coisas. Nos primeiros cinco dias, era evidente que a cada momento aquela condição piorava na cabeça ansiosa de Catarina. Ela não achava uma maneira de acabar com aquilo, isso tornava as coisas muito piores do que de fato eram. Afinal de contas, nossas experiências tem a qualidade que tiverem nossos pensamentos sobre e durante elas.

Mas é bem verdade que era um pouco exaustivo. Porque era muito incerto na cabeça dos dois o que os faria descobertos, o que poderia entregar que era mentira. Henrique mais ia com o fluxo do que qualquer coisa. Era ela quem se preocupava mais. Colocava a cabeça 5 ou 10 passos na frente de cada momento, e para sua própria tormenta, as escolhas seguras sempre seguiam a direção de reforçar o vínculo simulado entre os dois. No fim das contas, Catarina se tornou a principal força de sustentação daquele casamento. E em algum momento ela ia perceber isso, e isso ia tirá-la do sério.

Ele era quem tomava cuidado pra que, no meio daquele cansaço e má vontade para com tudo em volta, eles não deixassem de aproveitar minimamente o que foram ali fazer: viver uma Copa do Mundo. Acontece uma vez de quatro em quatro anos, e ir lá pessoalmente, se não for rico e nem jogador ou dirigente, é uma vez na vida.

Tanto é que, pouco depois de os amigos de Henrique irem embora, e as amigas de Catarina chegarem antes que ela pudesse processar tudo aquilo, já chamando pra ir pra Fan Fest ver o jogo no telão, foi ele quem sugeriu que fossem. Ela não tava muito a fim, mas foram. Lá eles arriscaram pela primeira vez se separar um pouco. Até aquele momento, agiam como se estivessem fisicamente atados, que nem Blu e aquela passarinha, do filme Rio.

— Vai encontrar a tropa? — Catarina pirraçou.

Henrique riu, marcaram um lugar de encontro, mas ele não foi muito longe.

Catarina pediu a Amanda uma ficha de cerveja, que depois daquele dia não deixou mais ela controlar as fichas e chamou pra si a posição de guardiã. No caminho até o cooler, grunhiu sem paciência pra uma papagaiada que acontecia do seu lado. Foi quando ela já tava com as cervejas na mão que alguém cutucou ela. Era o tal do francês. Feliz da vida de ter encontrado ela do outro lado do mundo. Conversaram um bocado. Ele disse que a galera dele fez um roteiro meio itinerante, ficavam revezando entre umas três ou quatro cidades-sede, onde tinham as melhores festas e os jogos que eles queriam ver no estádio.

Ela achou que ia ficar mais empolgada de encontrar com ele. Foi mais carnavalesco do que romântico, mas ainda assim foi pouco, pra quem esperou anos por aquele momento e já tinha até perdido as esperanças. Até porque, quem já foi sabe a euforia que é encontrar alguém conhecido num carnaval de Salvador. Você pode ver a pessoa semanalmente, você pode morar no bairro da pessoa, você pode ter visto ela ontem. Se você tá na avenida e reconhecer o rosto, bate tudo a emoção.

E com Pierre não bateu quase nada. Também, ela tava no meio do turbilhão dela lá. Mas, nada que um belo beijo de reencontro não resolva. Nem lembrou se ficou de levar cerveja pra Amanda, Bruna e essa menina. Atracou no pescoço do francês e passou-lhe a boca. No início, aquele beijo agitado, mais com força que com jeito, virando a cabeça pra lá e pra cá, batendo dente, procurando língua dura. Aí depois foi ficando lento, foi parando, e quando ela abriu o olho, ambos suados e meio surdos, ela viu que essa o grande beijo de reencontrou não resolveu.

Mais do que isso, ela passou a se sentir mal. Quando ela deu o primeiro gole de cerveja pra evitar ter que falar alguma coisa, ela percebeu que ela estava pensando em Henrique. Que diabo ele foi fazer na cabeça dela aquela hora? Na primeira oportunidade de paz e liberdade que ela teve na ausência dele, ele ia agora se enfurnar nos pensamentos dela. Intruso e inconveniente, se colocando no caminho entre ela e a primordial razão que a fez convencer todo mundo que valia a pena fazer essa viagem pra uma Copa sem sexo e com pouco álcool.

Fingiu que tinha que ir. Saiu às pressas, nem trocou informações de hospedagem ou telefone com o gringo. O cérebro latejando. Não de culpa, mas confusão, inquietação, irresignação quanto ao que pensava e sentia naquela hora. Chegou, e Amanda não estava, só as outras duas. Não quis nem saber o resultado do jogo. Perguntou se alguém tinha visto Henrique, porque ela já queria voltar pro hotel. Essa menina, que não era lá de muitas palavras, apontou pra ele, que já vinha na direção delas. Catarina fingiu estar mais bêbada do que estava e tascou um beijão em Henrique.

Ele não entendeu foi nada. Quando pararam, riram meio sem graça, mas gostando. Ela pegou o braço dele atou ao dela como uma senhora distinta da primeira metade do século passado, quando ainda não existiam cartões nem substituições no futebol. Então perceberam que, desde o primeiro dia que eles ficaram, eles não tinham se beijado mais, apesar de não terem saído do lado um do outro todos os dias, da hora que saiam de seus quartos, até a hora que se recolhiam. Excetuando, lógico, quando iam ao banheiro. Mas teve um dia que ele esperou ela na porta, com a cara bem colada, só pra dar um susto. Quando ela abriu a porta, deu um pinote impagável pra dentro. Uma mistura de salto e passo apressado, com uma interjeição de medo tipo “uai” ou algo assim. Ele riu mais do que ela.

Voltaram pro hotel falando pouco, mas não era bem constrangimento que pairava no ar. Era um leve pudor, misturado com curiosidade de saber o que passava na cabeça do outro. O que cada um pensava daquela epopeia. Pararam pra comer alguma coisa no caminho e deixaram o resto ir na frente. Quebrou um pouco o gelo um pedaço de planta no dente da frente dela, e ecos de normalidade amorteceram aquele momento. Pararam pra observar uns obeliscos numa praça. Algumas interações graciosas com transeuntes. Passaram por incontáveis telões de propagandas ostensivas até finalmente, pelo caminho mais longo, chegarem ao hotel.

Quando chegaram, essa menina não abria a porta de jeito nenhum. Devia estar dormindo ou não estava lá. Ninguém respondia no grupo, e Amanda atendia e desligava na mesma hora, dando o recado “tô vendo, mas não me ligue.” Henrique, até que muito cortês, ofereceu que ela dormisse no quarto dele. Ele tinha um robe extra e era o único da tropa que não estava dividindo quarto com ninguém. Ensaiou uma piada sobre a situação deles ficar mais realista assim, mas evitou relacionar aquele momento ao fardo que eles carregavam. Foi o primeiro dia de folga, eles estavam se dando bem, e o mata-mata ainda estava por começar. Ela aceitou mais rápido do que ele esperava, e lá se foram os dois.

Eu sei que você quer saber como foi. Mas o que aconteceu entre eles dois diz respeito a eles e somente a eles. Independentemente de qualquer coisa, aos olhos do mundo, agora eles eram mais esposos do que nunca. Mais esposos do que muita gente que de fato é, assinando em cartório e tudo.

Um farto banquete de café da manhã e risos. Catarina não gostava de demonstrações públicas de afeto, mas o batuque dele na sua coxa não parecia incomodá-la. Henrique estava solto. Virou pra colega de quarto dela, que ninguém nem lembrou de perguntar por que não abriu a porta na noite passada, e solicitou:

— Ô… Essa Menina, me passe a manteiga aí, por favor.

Catarina deu risada. Quando ele ia arrastando a faca na torrada se sentindo num comercial da Sadia, ou da Vigor, chega Amanda na mesa, sumida desde ontem, agarrada num pescoço de gringo, e anuncia:

— Gente, eu vou me casar! — seus olhos brilhavam.

Mas os olhos de Henrique brilharam mais, num riso sádico. “Essa menina é maluca”, ele pensou. Catarina perguntou:

— Como é isso, Amanda? Explique isso direito. Que história é essa?

— Ah, é! Deixa eu fazer as apresentações: esse aqui é Pablo, ele é Espanhol.

Ele era mexicano.

— Ele é campeão sul-americano de um esporte aí — virando pra ele — como é o nome mesmo, amor?

Ele não entendeu nada que ela falou. Deu de ombros sem jeito e rindo.

— É alguma coisa com raquete lá. O nome parece o nome de algum ator, parece.

O esporte não existia.

Ela levantou, puxou ele, e saiu falando:

— Agora a gente vai casar, antes que eu seja presa, porque eu dei pra ele ontem a noite toda.

Todos emudeceram com essa informação dispensável, e observaram ela ir embora com um bom nível de perplexidade. Catarina não sabia se ria ou se ficava preocupada. Amanda não era tão banda-voou assim. Isso era estranho. Era melhor fazer alguma coisa a respeito, mas ela não sabia o que, nem como. Primeiro passo? Sair correndo atrás dela e pedir maiores explicações.

Passando pelo saguão, em frente ao balcão da recepção, viu de relance o malicioso sorriso no olhar de A., que acompanhava cada passo enquanto ela procurava Amanda. Isso pegou nos nervos dela. Agora que a simulação toda já não era assim tão penosa, ela viu em relevo a gratuidade daquela malquerença toda direcionada. Sentiu uma quentura na nuca, uma vontade de dizer poucas e boas. Afinal, foi a perfídia serpentinosa de A. que iniciou toda a Operação Casamento. Ela não ia aceitar ficar nas mãos de alguém, passível de ser chantageada. Muita audácia dessa fiscal de transa.

Desviou o foco. Botou a cabecinha pra fora da porta do hotel, olhou prum lado, pro outro, não achou nada, voltou. Caminhou reto e firme na direção da recepcionista, olhando fixo. Quando encostou o busto no balcão, era só sorrisos. Arrastava os dedos de leve pela própria nuca e clavícula, jogadinhas de pescoço entre risinhos envergonhados, lisonjeiros, ajeitava o cabelo. Quem via de longe, percebia que ela se derretia toda e que a conversa não desengatava o ritmo. Depois de uns bons 5 ou 10 minutos de pipipi-popopó, se despediu com um ar de to be continued.

Voltou pra mesa, não tocou no assunto. Henrique estranhou. Cogitou perguntar, mas pra quê lembrar do lado ruim daquilo tudo justo quando as coisas iam bem? É bem verdade que a postura dela como um todo ficou diferente. Bruna e Essa Menina começaram a elucubrar o que fazer em relação a Amanda, mas Catarina de pronto passou a navalha.

— Ela que sabe dela. — tapa na mesa — O dia vai ser normal, e a gente vai aproveitar. É Copa do Mundo, porra! A gente vai ver jogo e gastar onda. As outras coisas a gente vê depois.

Sem convicção, Henrique concordou e incentivou. As meninas se entreolharam, mas aceitaram. E o resto do dia correu sem muitos incidentes memoráveis. Turbantes comprados no camelô; cerveja derramada na camisa; aqueles copos de 500ml com data, nome de jogo e marca de bebida gringa; a saudade de um beiju de rua, de um x-tudo, de um amendoim; uma bandinha de fanfarra pra pirraçar; tenho certeza que tinha um dromedário de papelão pra otário tirar foto; atrapalhar entrevistas de transeuntes a emissoras de TV locais; buzininha na moto; edifícios altos, iluminados e coloridos; dinheiro mal gasto; ácido úrico lá em cima; joga um Gatorade pra dentro que resolve;

De noite, retornando da rua, após uma tarde dedicada a uma leve e responsável muvuquinha, as duas amigas encontraram Catarina no quarto, arrumando uma mochila. Bruna perguntou:

— Vai pra algum lugar com seu marido? — rindo.

— Não, ele vai sair com os amigos hoje. Amanhã tem jogo do Brasil. — respondeu seca, meio ensimesmada.

Após alguns segundos de silêncio, sugeriu:

— Vocês vão atrás de Amanda?

Elas responderam que sim, mas sem muita firmeza. Quase como um “é, né? que jeito?”. Até aquela altura, ninguém sabia muito mesmo como lidar com isso. É preciso encontrar a raiz do problema pra surgir com uma solução. A não ser, é claro, que você tenha em sua posse uma arma letal, suprema e infalível.

Catarina deixou as amigas tateando entre as possibilidades de como resgatar a apaixonada da vez de uma nítida laranjada e saiu do quarto já com tudo maquinado. Séria, sisuda, com o olhar fixo, firme, pra frente, caminhando decidida. Botou a cabecinha pra fora da porta do hotel, olhou prum lado, olhou pro outro, virou à direita e sumiu. O vulto que se via vestia um sobretudo, tipo de detetive da Scotland Yard, e carregava uma mochila de alça cruzada. Algumas ruas adiante, parou na calçada. Checou se estava sendo seguida. Confirmando que não, entrou numa espelunca do ramo hoteleiro que certamente tinha como foco estadias de curta duração.

Dentro do quarto n. 19, abriu o sobretudo, revelando que, por baixo, usava só uma calcinha. A. não esperava que ela fosse chegar tão pronta, tão nesse pique “use-me”. Soltou um leve riso meio incrédulo e foi no banheiro pegar alguma coisa. Voltou já só de lingerie e foi se aproximando devagar da sua tão sonhada presa. Ela nem acreditava que Catarina realmente tinha ido. Não estranhava tanto a facilidade com a qual as coisas tinham se dado quanto estranhava o comportamento da brasileira. Normalmente, ela comandaria, pela experiência. Uma turistinha com cara de menina, busto rosado, pele macia, provavelmente estaria ali não mais do que se entregando a uma curiosidade. Mas Catarina estava querendo dominar. Insistiu que seria ali mesmo, no chão. A pegação inicial não foi muito diferente de uma partida de wrestling.

Alguns minutos de tesourada, lambidas, muita saliva, muito dedo, Catarina não deixou também de aproveitar as habilidades da nativa. Em certa altura, se deixou obedecer um pouquinho. A. estava atônita. Marido ou não, fosse quem fosse, aquele tal daquele brasileiro não estava dando conta do recado. Os olhares tinham um pouco de empáfia, um pouco de malícia, um pouco de crueldade. Lá pelas tantas, Catarina imobilizou A. e montou em cima dela. Com uma mão, a mantinha na ponta dos dedos. Com a outra, segurava o rosto, e às vezes descia para o pescoço a fim de mostrar quem estava no controle. Beijos no rosto e no pescoço, tão suaves que o lábio mal tocava a pele da outra. O tipo de sutileza na carícia que é quase humilhante. Mostrando que acaricia porque quer, já que pode muito bem ferir. A. estava entregue, imóvel. Catarina lambeu a orelha dela bem devagar. Segurou o queixo dela com força e não deixava ela mover a cabeça. Abriu a boca da recepcionista, cuspiu dentro bem lentamente e fez ela engolir.

Chegou bem perto do ouvido de A., respirando alto e lento, de propósito, e perguntou:

Have you ever imagined if we got caught?

Trêmula, A. respondia:

Y-Yes…

What if we were sent to jail together? — provocava Catarina — Wouldn’t you like it?

I would love it— balbuciou A.

I didn’t hear you — Catarina replicou, afastando a cabeça e olhando nos olhos de A.

I would love it.

Louder — ordenou

I would love it!

Yeah? What would you do?

I’d let you sit on my face everyday.

You don’t let me do anything. You beg for me to do it.

I’d beg you! I beg you!

What else?

You’d do whatever you want with me. You’d spit in my mouth and I’d swallow every drop. And I would beg you to go down on me and suck me off.

What if somebody else wanted to lick you or use you?

I’d ask you first, but I’d let them. I’d let every single woman use me till they’re done.

Why?

Because I’m your bitch. I’m your horny little lesbian slave!

That’s all I needed to hear.

E, sem mais nem menos, friamente, soltou as mãos do corpo de A., levantou, se vestiu, fechou a mochila e foi embora. Largou ela lá, que ficou ainda uns 15 minutos estática no chão, achando que ela ia voltar, que aquilo era parte de seus joguinhos de controle. Até A. se tocar que aquilo não ia acontecer, que ela não ia voltar, e finalmente se levantar e se vestir, Catarina já estava longe. Só no hotel, em segurança e usando o wifi, foi que ela tirou da mochila o iPad e salvou na nuvem o vídeo que registrou toda a consumação. Parte dele só dava pra ver as duas da cintura pra baixo, mas no início tinha o necessário pra identificar o rosto de A. E o mais importante não era só a atividade, mas o que elas falaram durante o ato. A exposição das verdades sórdidas escondidas nas camadas mais profundas da psique de uma alma reprimida.

Catarina não sabia ainda quando ou onde ia atirar, mas tinha a arma, e isso era suficiente pra deixar a cabeça descansar um pouco despreocupada. Ia contar pra Henrique, mas antes disso, ele chegou no quarto a tempo de vê-la se tocando enquanto assistia e ouvia o vídeo. Ela não tinha onde enfiar a cara, mas ele até que pirraçou pouco. Principalmente por não saber do que se tratava. Resumiu-se a um “cuidado que isso também dá cadeia, viu?”.

Lá pelas tantas ele se tocou que os sites pornográficos eram todos bloqueados no país — lógico que ele tinha tentado — e se perguntou que diabo ela tava assistindo. Ávido por saber se ela tinha filmado eles dois escondido, ou se tinha desbloqueado alguma artimanha pra acessar um pornozão, ele partiu pra cima dela perguntando sobre o conteúdo. Parte por parte, ela foi contando pra ele. Como a ideia se formou na cabeça dela, como ela arquitetou tudo, o encontro, os horários, a discrição. E ele, impressionado com as capacidades malignas de maquinação da mente dela, estranhou ela se prontificar a mostrar o vídeo. Ele tava doido pra ver, é claro, e ela precisava que alguém testemunhasse o feito. Poderia ser que não fosse necessário encurralar a recepcionista com o vídeo. Mas pelo menos viraria uma excelente história. Se não uma proeza, certamente uma prosa.

Mas Henrique ficou petrificado. O tesão inicial foi substituído por uma espécie de fastio, de horror. Foi verdadeiramente chocante pra ele contemplar os lugares que a mente dela exibiu de si e visitou da mente da outra. Que tipo de pessoa era aquela? Ele não a conhecia bem, era fato. Mas não estava certo de que queria conhecer aquilo. Ser capaz disso? Já pensou se ela ensaia uma performance dessa na cama com ele? Ou no sofá, que seja. Numa cadeira, dependendo, talvez até fosse legal. Enfim, foi assustador. A partir daí ele desconversou. Teceu alguns comentários sinceros sobre a elaboração e o comprometimento com a ideia. Varreu da mente alguns pensamentos intrusivos, como ela dominando ele, amarrando seus braços e pernas numa cadeira com sacos de supermercado, ou um saudável “aquela recepcionista é gostosinha”. Pirraçou ela mais um pouco com um “e você também tava adorando”, mas se manteve distante até arrumar uma desculpa pra sair dali. Distante o suficiente pra levantar questionamentos na cabeça dela, mas não tanto a ponto de que ela perguntasse.

Já Amanda foi encontrada pelas outras duas amigas no cafofo de uma trupe de hispânicos maconheiros. Fumantes de pen drive, vape, seda e blunt. Kunk, kush, haxixe com tabaco, marrom, paquistanês, tudo que o Oriente Médio pudesse oferecer de melhor. Tudo isso ao som de Migos, Travis Scott, Chief Keef e A$AP Rocky. Ficavam pra lá e pra cá no quarto de hotel com raquetes de ping-pong, jogando a bola um pro outro como se estivessem batendo uma mistura de altinha e frescobol. De dois em dois, se revezavam no FIFA, e proferiam impropérios ininteligíveis. E ela se divertindo, adorando. Não fazia ideia do que ninguém dizia, mas sabia que era ofensivo.

Chegaram as duas. Essa Menina era a mais indignada, Bruna tava meio foda-se, ficou calada o tempo todo. Chegaram sem paciência pros mexicanos e sem paciência também para a não tão convicta relutância de Amanda. Já na batida na porta, o encarregado de abrir, de apelido Bacteria, perguntou aos demais:

Quien ha pedido delivery de dos chicas hermosas? Llegarón! Y se nadie las va a comer, las como yo.

Elas entraram que nem viram Bacteria. Essa Menina puxou o pulso de Amanda e já saiu arrastando pra a porta. Ela tava pouca ideia. A inconveniência, nessa noite, falava espanhol:

Tranquilo, chicas! Ya se van? Quédense más un poco. Nosotros las enseñamos a jugar también.

Pablo não movia uma palha.

Sí! Y Monchito — o mais magrinho — puede mustrar un truco que hace con el codo. Solo necesita una voluntaria.

— Que jugar o que, meu filho, se toca — Respondeu Essa Menina, ignorando a sugestão de apreciação dos talentos de Monchito.

Amanda enquanto isso catava as coisas pelos cantos na agilidade de um cágado. Pablo estava com um óculos escuros — isso era umas nove da noite, mais ou menos — imóvel, com uma flor presa com um esparadrapo no peito da camisa, como estaria num smoking. Um outro tava com um véu de noiva, curto e amassado, pendendo da cabeça.

— Bora logo, Amanda, que eu quero sair desse lugar— apressou a agora decididíssima desnomada.

A essa altura, Kiko, o fiel escudeiro de Pablo, veio tentar entrosá-las de maneira mais atraente e humanizada. Menos animalesca e imbecil. Foi caçar afinidade justo com Essa Menina. Queria mostrar pra ela como funcionava a confecção caseira de vinho que eles operavam no covil.

Tranquilo! Tranquilo. Y tu, hermosa, como te llamas?

— Não importa! Suelta meu braço. — virou-se — Amanda, vamo logo!

Amanda a essa altura olhava fixamente nos olhos de Pablo, numa despedida cinematográfica. Sabiam que não se veriam de novo. Temiam se encontrar novamente. E ele, meio sem jeito, meio sem interesse:

Sabes, la próxima Copa va a pasar en Mexico, y…

— É o que, maluco, sai! — Essa Menina interrompeu Pablo, puxou as amigas e foram finalmente embora.

Lá dentro, alguém falou:

Mierda, Bacteria, la culpa es tuya! — e todo mundo concordou e atirou nele o que tivesse à mão.

No caminho de volta, Essa Menina perguntou se Amanda tinha cometido o destrambelho de contrair matrimônio junto àquele sacripanta. Para alívio geral, ela disse que não. Que iam no dia seguinte, porque Pablo tava escolhendo o padrinho. Naturalmente seria Kiko, mas como foi Monchito que apontou Amanda pra Pablo, ele estava pleiteando a honra. Nessa hora, Bruna expressou forte indignação por não ter sido chamada pra ser madrinha. Recebeu um belo cala a boca de Essa Menina. Ela estava irreconhecível, essa menina. Quanto a Amanda, na falta de uma explicação mais consistente, tudo o que ela conseguiu elaborar em defesa própria foi que sentiu uma conexão verdadeira pela primeira vez em muito tempo. Como se tudo de errado de repente parecesse certo. Como se, em outras circunstâncias, tendo talvez nascido na mesma cidade, estudado no mesmo colégio, eles fossem mais do que uma irresponsabilidade diplomática num mundo de proibições.

Depois que Henrique saiu do quarto, Catarina ficou sentada na cama pensativa. Não a ponto de estarrecimento. Em nenhum dos lados, nem dele, nem dela. Mas uma contagiosa estranheza, isso sim. Já nem lembrava mais se aquele era o quarto dela ou dele, que horas eram, ou o que ela ia fazer depois dali. Ela não tinha nada programado. Só depois de passar uma água no rosto e na garganta foi que ela surgiu com uma resolução: se ele ia fazer a ressentida, agora mais do que nunca era necessário botar as armas de fora.

Desceu o elevador, foi até o saguão. No que a porta do elevador abriu, ela já viu que A. tinha percebido, levantado e discretamente tentava fugir. Ela foi atrás, implacável, seguiu a recepcionista até uma antessala acessada por uma portinha do lado da quina do balcão da recepção. Se viram a sós. Com um suspiro, Catarina encarnou a mesma personagem da noite anterior. Lentamente se aproximava da vítima e elaborava mentalmente o roteiro da ameaça. A. tentou abrir uma portinha que dava pra a sala adjacente, mas fosse por destrambelho no ato, ou por estar de fato trancada, não conseguiu abrir. Catarina chegou bem perto e comandou:

Hush, little perv. Sit down. You’re not going anywhere.

A. sentou num sofá do lado da porta, meio trêmula, vacilante, sem tirar os olhos dos olhos de Catarina.

By now, I imagine you figured that I filmed our whole adventure last night.

E fez “shh” calma e lentamente, quando A. ensaiou puxar ar pra falar alguma coisa.

And you know what that means. Don’t you?

A. assentiu com a cabeça sem convicção.

Just to make sure, let me clarify to you: it means you won’t bother me with your funny looks or any sort of suggestion. You’ll behave very nicely from now on. Or else, once I’m gone, I’ll turn you in. I can blow your whole world just by tapping a screen. And even better: I can screw you from anywhere around the globe. I don’t even need to be here.

Catarina, a essa altura, já estava com o rosto bem próximo do de A., que a encarava estática e confusa; assustada.

So, the only way you’ll get out of this mess is by keeping your pretty mouth shut.

Nesse momento, ela segurou forte as bochechas da atrevida recepcionista, que agora estava pianinho nas mãos da turista brasileira.

Show me how you’ll zip it.

A. colocou os lábios pra dentro, fechando a boca com força. Catarina apertou o rosto dela até os lábios saírem de novo, deu um selinho lento e largou o rosto dela de vez, jogando pro lado.

Good.

E saiu da saleta. A. esperou alguns segundos e tentou checar se alguém teria ouvido aquilo. Rezando para que não, ajeitou a roupa, enfiou a mão debaixo da saia, desgrudou a calcinha úmida e saiu pela mesma porta que entrou.

Agora, com essa pendência resolvida, Catarina respirava mais aliviada. Conforme a persona sexualmente cruel e maligna gradualmente se esvaia, ela conseguia ver com mais clareza o quão estapafúrdia foi toda aquela situação. Ao se tocar do que ela foi capaz pra conseguir o que precisava e, mais do que isso, que tinha se divertido ao executar todo o plano, Catarina se esgueirou numa pilastra e caiu na gargalhada. Algumas pessoas passavam e olhavam, mas não era isso que ia fazê-la se importar, nem muito menos se reprimir. E o pior (ou melhor) é que ninguém mais sabia de nada. Só Henrique. Henrique! Ela tinha que falar com ele. Avisar que agora estava tudo bem. Que ela tinha neutralizado a principal ameaça à paz de ambos.

É de se imaginar a cena, como aquele final risível de Licorice Pizza, em que os dois personagens — ou pelo menos um deles — sai correndo e gritando o nome do outro ao vento em busca de um desfecho acachapante e conciliatório [Ryuichi Sakamoto - Merry Christmas, Mr Lawrence, a partir de 02:45, ao fundo]. Claro que não. Ela sentou no bar do hotel e pediu uma mentiroska e uma água para aliviar o riso frouxo que ainda escorria por entre os lábios, enquanto elaborava o que diria quando encontrasse seu mentirido.

Pouco depois, ela ouve chegar Henrique junto com a tropa e caminham para sentar numa mesa um pouco mais distante. No que ele passa, ela chama e ele vai, mas não sem antes ouvir comentários inoportunos dos demais. O humor dele não era dos melhores. Foi assim o dia inteiro. Definitivamente não estaria muito receptivo ao que quer que fosse. Mas não ia se negar a uma conversa. Afinal, ele estava incomodado, mas não sabia se necessariamente tinha motivo para estar chateado. Se antes ele já não entendia muito bem a dinâmica das coisas, agora entendia menos ainda. Enfim, sentou e se dispôs a escutar.

Ela contou, de início mais animada, mas aos poucos tentando instigá-lo com um caminhar mais lento e densos e tensos detalhes que ela tranquilamente poderia ter poupado. Bastava lembrar que, apesar de não haver refeição, eles estavam à mesa. Cabe um mínimo de pudor. Mas o que importava, no fim das contas, é que agora eles não precisavam mais se preocupar com aquela apertação de mente toda. A navalha estava fora do pescoço. Não havia mais necessidade de medir cada passo dado, de saber quando estavam ou não sendo vistos ou observados. Praticamente não precisavam mais fingir que estavam casados, agora que a única pessoa empenhada em dedurá-los estava amedrontada. E o resultado, embora não inimaginável, pra ela foi um tanto inesperado. Henrique ergueu as sobrancelhas e disse:

— Pois é… — deu dois tapinhas leves na mesa — agora, então, você está livre. — levantou e saiu.

Catarina ficou ainda na mesa um tempo. Assistiu de longe ele caminhando até a mesa dos amigos dele, sentando e dando pouca ligança às barbáries provavelmente proferidas pelos babuínos. Ela não sabia se era só ela, ou se qualquer um que ali repousasse os olhos viria como o humor dele estava distinto do restante da trupe. Ela queria dizer coisas a ele, mas não sabia elaborar. Não sabia nem o que queria dizer, só sentia que queria falar. Por alguns minutos, esperou que os olhares se cruzassem e que aquilo magneticamente o trouxesse de volta ao lado dela. Mas não aconteceu. Subiu, então, e foi pro quarto tomar um banho.

Tomar banho, nessas circunstâncias, é sempre uma redescoberta. Nunca é curto. Duvide das almas que, quando tristes ou confusas, não travam longos e emocionantes diálogos debaixo do chuveiro. A água batendo na cabeça, correndo pelo corpo, atribui mais drama à situação. O interlocutor pode estar em qualquer canto. Fixa-se o olhar na parede e uma torrente de eloquência toma conta da nossa capacidade de expressão. Ah, se toda conversa importante acontecesse durante uma bela e farta chuveirada. De aquecedor, claro. Senão prejudica todo mundo.

Foi durante o ritual de higiene que Catarina conseguiu dar forma, mesmo que líquida, ao que sentia sobre aquilo tudo. Era, sem dúvidas, muita coisa a se processar, num período de menos de um mês. E assim, algumas conclusões se solidificavam na sua frente, enquanto abria seu coração para a parede e esfregava a espuma contra a pele da barriga, do peito, dos braços. Não só conclusões sobre o caso concreto, mas também sobre a vida, sobre as relações humanas. Percebeu ali que os vínculos forjados pelas circunstâncias externas podem, sim, causar mais alvoroço. Passar a impressão de que tudo conspirava para que assim fosse. Lhe faz questionar muitas coisas, não entender bem outras, aceitar outras tantas sob a justificativa de que não poderia ter sido diferente.

Mas os vínculos sustentados pela vontade, esses sim, são duradouros. Fazem frente firme às adversidades e aos obstáculos que ensaiam interpelar pelo caminho. Foi a vontade que fez ela vislumbrar a possibilidade de simular uma vida de casados com um sujeito que tinha acabado de conhecer. Vontade de não ser presa, é verdade. Mas, ainda assim, vontade. Foi assumir riscos que a fez perceber que a vontade dela não mais buscava o tal do francês de quatro anos antes, e sim que sua bússola interna apontava para aquele que aderiu àquela empreitada junto com ela. E mesmo que de início tenham sido as circunstâncias que desenharam aquele cenário, foi a vontade de escutar alguma nova idiotice que a fizesse rir que fez Catarina dar atenção ao que ele teria a dizer.

Quase um mês daquilo e os jogos já não eram a coisa mais importante do dia de nenhum deles dois. A título de um engodo ou não, eles acordavam, saíam do hotel e retornavam com o pensamento voltado para fazer um casamento funcionar. Escolhiam juntos a que jogos veriam no dia; quais pratos dividiriam no almoço e na janta; pegavam coisas para o outro no buffet do café da manhã; aturaram, em algumas oportunidades, as amizades inconvenientes de um e de outro; ele explicou algumas coisas sobre o futebol e sua história pra ela, ela fingiu ter interesse só porque queria ouvir ele falar; ela gostava de ouvir ele falar apaixonadamente sobre quase qualquer coisa; o temperamento e a vida sexual instáveis davam toques de realismo que colocariam casamentos reais numa berlinda perigosa. E no meio deste turbilhão de pensamentos, tendo percorrido um quarto da circunferência da Terra, se misturando entre frames de filmes e diálogos com nativos em inglês, Catarina flagrou a si mesma, debaixo do fluxo de água corrente, arrastando as mãos sobre os cabelos, com os olhos fechados e murmurando devagarinho “Love is will”.

Contrariada, Catarina voltou à realidade material com três batidas na porta e o som da voz de Essa Menina perguntando se ela estava viva. Ela não sabia dizer se estava lá há 10, 15, 35 ou 50 minutos. Era hora de se recompor e, quem sabe, até tomar uma atitude. Não é como se ela já não viesse de um fluxo de atitudes drásticas tomadas em prol daquilo que ela acredita que precisa. Botou a roupinha de acertar — no mesmo pique de arrumação que você, indo trabalhar dia de quinta-feira — e desceu. Do elevador, ela conseguia distinguir que uma trupe de arruaceiros cantava o hino do Botafogo no térreo. Sorriu, pela primeira vez em semanas, com a perspectiva de ser a boa e velha tropa. Ela lembrava que Henrique tinha dito que a letra fala que o Botafogo é campeão desde 1910, sendo que isso não faz sentido, porque o primeiro título foi em 1907 e a fundação foi em 1904, então 1910 é só mais um ano na história do clube.

Quando ela chegou no bar do hotel, era sim a tropa. Vários funcionários tentavam acalmá-los, o que só dava combustível à euforia deles, seja lá qual fosse o motivo. Um deles a reconheceu, deu um grito dizendo “a esposa de Henrique!”, e puxou ela pra dançar enquanto o restante seguia “na estrada dos louros, um facho de luz…” e ela tentando se soltar e perguntando cadê ele. Quando ela finalmente se desvencilhou do inconveniente e perguntou por ele de uma vez por todas, a única resposta que conseguiu foi um longo, sonoro e desafinado “hmmm” de todos, como bem seria se os presentes tivessem 11 anos de idade.

Saiu revoltada. Andou pra lá e pra cá, não achou nada. Perguntou, ninguém soube dizer. Subiu até o quarto de Henrique. Mas na hora H, de frente para a porta, ela não sabe porque, desistiu de bater. De punho erguido e tudo. Abaixou o braço e saiu. Saiu andando muito devagar, como quem espera que alguma coisa a faça dar meia volta. Enquanto esperava o elevador, virava o pescocinho de 5 em 5 segundos fiscalizando a porta do quarto dele. Ele não apareceu, e o ascensorista já tinha perguntado duas vezes se ela ia entrar e pra qual andar iria. Então ela foi. Bem desse jeito, ela simplesmente foi.

Chegou no quarto e começou a juntar as coisas dela, separando da bagunça que tinha se formado com o baixo nível de organização de Essa Menina, fora as coisas que Amanda e Bruna tinham largado no quarto delas. Mas juntava sem a convicção de quem arruma uma bagagem. Ela não ia a lugar nenhum. Arrumava os pertences como se fossem eles seus pensamentos. Olhava suas coisas como se nelas fosse enxergar algum tipo de pista sobre como se sentia diante de tudo aquilo. Uma viagem internacional, com o objetivo simples de turistar numa cultura quase diametralmente oposta à que fora criada, acabou se transformando numa cadeia de eventos sem precedentes em sua trajetória ou até em sua imaginação. Como sair pra comprar um cacho de uva e voltar de carona numa kombi com um colchão aquático pra casa.

A Copa do Mundo já não se via nem pela visão periférica. O que é um evento que acontece de quatro em quatro anos diante de algo que só acontece, quando muito, uma vez na vida? Apesar de alguns dias antes essa informação lhe causar correntes de entejo, agora ela quase vociferava gratuitamente que, sim, nutria sentimentos genuínos por Henrique. E, tendo ela nenhuma dúvida disso, por que então não tomou uma atitude, não correu atrás? Ao contrário do que uns e outros talvez estejam pensando, não teve absolutamente nada a ver com o calundu com recheio de ressentimento que Henrique deu diante da notícia do fim da necessidade de sustentar a falácia.

Nem era hora, muito menos, para se começar a culpar o contexto. A verdade é que muitos daqueles elementos deixariam saudades. Passado o tempo certo, me arrisco a dizer que todos. Os horários pouco ortodoxos; os ambulantes ostensivos; o frio na barriga ao cruzar o saguão; os olhares indiscretos no metrô; a inconveniência gringa; a vontade de impressionar, com o intuito de distrair; o uso desnecessário de tecnologia; toda a sorte de coisa que imprimisse uma sensação de perseguição, de asfixia; também os restaurantes abarrotados; os turistas barulhentos; era pra cá que a gente vinha mesmo?; a sobreposição dos idiomas; a inconveniência nativa; a furtividade dos beijos; o pouco tempo a se aproveitar; a proibição do permitido; a permissão do inaceitável. Agora tudo isso se costuraria no forro interno do esquecimento. A não ser que, mais à frente, fossem trazidas de volta à vida.

Se pelo menos as coisas pudessem ter se desenhado com um traço mais livre. Se os contornos fossem diferentes. Talvez a figura fosse mais agradável em sua totalidade. Talvez, mesmo por isso, fosse menos memorável. A quem convém profetizar o passado? Fosse como fosse, o desenho ia pra gaveta. E ela ia de volta para a casa que ela estava acostumada, na cidade em que ela estava acostumada, no país que ela estava acostumada, com as pessoas que ela estava acostumada. Não acho que cabe aqui muita reflexão. Ela achou bonito pensar neles dois como dois corpos brasileiros soltos pelo mundo, passíveis de se esbarrarem a qualquer momento. Só isso. É que pareceu ser uma boa oportunidade para deixar as coisas um pouco a cargo das circunstâncias, quando se sabe muito bem que vontade é o que não falta.

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