irmandade

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
4 min readSep 1, 2023
Sofia Stevi: Orange with Two Flies, 2022

M,

Nunca fui de sentir sua falta, mas ontem estava amarrando o cadarço um pouco mais devagar pra sobrar tempo para pensar na vida e aí me veio uma vontade doida de chorar de saudade de você.

Não nos conhecemos, você deixou esse mundo antes que eu pisasse nele, mas já te vi em fotos, sei da cor da sua pele, da curvatura dos seus cachos e do espaço entre seus dentes. Sei da vez que tirou todos os LPs da coleção do pai das caixas, da paixão por tangerina e jujubas laranjas e o nojo de pisar descalça na areia da praia.

Será que é possível sentir saudade de quem a gente nunca conheceu?

Não sei, M. Sei que sinto que nunca me faltou nada, todos os espaços foram devidamente preenchidos. Sua ausência não chegou a ser um fantasma nem nada do tipo, mas ultimamente as coisas não estão fáceis. Acho que ultimamente é o novo presente e o provável futuro, porque crescer é complicar as coisas: os problemas são mais sérios e os adultos não se calam no meio da briga quando você entra na sala porque agora você é adulta também.

Sei lá, M.

Seu nome veio na minha cabeça, eram 15:45 da tarde, e me vi com o desejo de ligar para você. Perguntar como vão as coisas, dizer que o pai e mãe estão bem, daquele jeito confuso deles, e dizer também que me preocupo demais com a vó depois que o vô morreu, ela parece meio… inconsistente. Tia Carla e Tio Bento brigaram de novo, mas vai ter almoço aqui no domingo e espero que eles voltem ao normal. Finalizaria a ligação assim: a propósito, você vem no domingo, né?

A mãe já me disse algumas vezes que eu sou a pessoa que ela mais ama no mundo. Fez questão de olhar bem nos meus olhos e repetir. E ela repete as vezes, não sei o porquê. Ela fala e tem muita força nas palavras dela, esse “eu te amo mais que qualquer coisa no mundo”. São palavras fortes que explicam que não querem me bater, mas vejo os músculos enormes e duros e torneados. São palavras com força para proteger.

Morro de medo que um dia essas palavras decidam me bater, M, porque sinto que elas me agridem sem querer, sabe? Pode ser legitima defesa ou só impressão minha, mas me sinto agredida. Será que na verdade me espancam sem ter consciência disso?

A vó também já me disse isso, daquele jeitinho teatral dela. Disse que é tanto amor que transborda do peito e ela tem que ficar pegando o que escapa com as próprias mãos pra colocar lá dentro de novo. Vi exatamente a mesma força e senti uma coisa estranha ouvindo “tudo que temos é você”.

Doeu. Ainda não sei dizer se foi bom, M. Me aconchegou, mas como eu disse, dá medo também. É uma vitamina de medogratidãoamordesesperourgêncianecessidade. Tudo assim mesmo, sem espaço.

O pai nunca me disse, e já é responsabilidade demais, com a minha pouca idade, ser a-pessoa-mais-amada-do-mundo de duas pessoas. Mas mesmo ele não dizendo com todas as letras, tenho a sensação de que ele me guardou o mesmo lugar, sensação que chega todo dia 3 de dezembro, seu aniversário, quando ele me abraça e chora sem dizer uma palavra. Mas gosto do fato dele nunca ter dito com todas as letras, assim eu não preciso dar corpo as palavras dele, apesar de saber que existem.

Acho que é muito. É demais, né? Ser a pessoa mais amada do mundo para alguém. O mundo é bem grande, a mãe e a vó conhecem bastante gente e no meio de todas essas muitas pessoas, a mais sou eu.

Tenho a impressão de que você já foi a pessoa-mais-amada-do-mundo para a mãe e para a vó e acho que é por causa disso que me veio uma vontade doida de chorar de saudade de você. Poderíamos ter dividido, seria melhor, adoraria dividir isso com você, M, porque sozinha pesa. Meus ombros são pequenos e para esse peso, não tenho força.

Eu te perdoo por morrer, tá? Acho importante deixar isso explícito.

Imagino que seja fácil não fazer nada e essa liberdade foi a morte quem te deu. A vida me enche de possibilidades, mas de vez em quanto tenho inveja de você, M. Te queria aqui por hoje, por ontem e por amanhã. E mesmo leiga da sua presença, as vezes finjo que você existe para usar seus ombros pequenos, iguais aos meus, junto comigo.

Enfim, como disse: nunca fui de sentir sua falta até o dia de ontem, quando chorei por alguma coisa e resolvi que seria de saudade de você, minha irmã.

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