Joana e Maria

Catharina Azevedo
Revista Mormaço
Published in
4 min readJul 17, 2022
Imagem: Pinterest

Elas eram tão díspares quanto duas paisagens cujos limites, finalmente atingidos, uniam-se em contraste. Até suas características se complementavam, como se feitas para caber nesse texto: uma era lourinha e aqui a chamarei de Joana. A outra era morena e a tratarei por Maria.

Meu trabalho era educá-las, até onde se podia educar duas meninas de três anos. Mas eram tão cruéis comigo. Bastava escutarem as recomendações das mães e já confabulavam entre si, maquinando estratégias para me atormentar. Eu era facilmente atormentável, jovem, toda pânico e subserviência, enquanto elas se escondiam atrás de seus olhos grandes e bochechas coradas. Armavam-se, munidas uma das presença da outra. Mal se afastavam as progenitoras e elas já arquitetavam chantagens e insurreições.

Como me feria a indiferença daquelas crianças! Eu queria muito ser gostada. Mais do que isso, até: desejava ser amada por elas, como se assim pudesse ter acesso ao amor primordial, cheio de graça, nelas ainda recente de sua impregnação na maternidade. Penso por vezes que é este o único amor que conhecemos, estando fadados a pálidas tentativas de recriá-lo.

Mas eram indiferentes a mim, e de relance eu via minha própria infância, também egoísta e regiamente indiferente. Sobretudo em Maria, líder de arquiteturas maléficas: tirava os sapatos, esperneava pelo lanche sem estar com fome (um pretexto para se distrair das atividades), bagunçava a sala. Entretanto, secretamente, eu a preferia, pela sua franqueza, a inflexibilidade de um cavalo bravio. Pois não havia argumento que eu lançasse para dissuadi-la sem com isso tornar-me hipócrita: se os sapatos machucavam, para que usá-los; por que comer às nove e meia, e não às oito? Não podia chegar à ela nem pela autoridade, nem pela docilidade, sem ser dobrada.

Tentei admoestá-la com brandura uma vez: Maria, virão te buscar daqui a pouco e seu material não está reunido, o que você vai fazer?

E ela, com o invejável brio que me espreitava por cima das pernas balançando na poltrona: vão me mandar arrumar, aí eu arrumo.

Se eu sofria, Joana sofria em dobro. Era branquinha, os cabelos arrumados atrás de passadeiras, o aspecto impecável. E era obrigada a vestir aquela impecabilidade, enquanto assistia a outra desfiá-la. Queria remover a passadeira que lhe doía as orelhas e eu deixava, apenas para ouvir de sua guardiã: por que Joana soltou os cabelos? Deve deixá-los fora da testa. Por que Joana não escreve o nome na linha pontilhada? Aproveite que a aula é particular, ela deve ir muito esperta à escola no próximo ano. Por que Joana deixou os brinquedos espalhados? Já não tem idade, em casa ela não faz assim.

Falava ainda, com a desconfiança de quem enxerga o interlocutor indesejavelmente mole: pois não deixe Joana fazer o que quer, se ela não escrever o nome saiba que eu a proíbo de ir ao parquinho que ela tanto gosta. Até que, vencida a hesitação, passou a me tomar como confidente: a mãe de Maria não dá limite à criança, e isso não é comigo. Voltava então à vida transparente, embebida no leite da menina.

Levei Joana para brincar no sol e ela voltou vermelha, me desesperei. Deixei Joana comer a pipoca da coleguinha e ela chegou em casa vomitando, quase morri de medo. Enquanto isso, Maria passava com a altivez de uma princesa selvagem, usando apenas um brinco na orelha. Detestava que lhe pusessem dois. Vinha queimada de sol de praia e me olhava com o olhar dos mamíferos, toda barganhas, a perder tempo com um ser que julgava antes tediosamente compreensível que incompreensível. Até que desisti, subjugada: por favor, faça a atividade que sua pró chata está lhe pedindo.

Ela, enfática: você não é chata.

Houve, no entanto, algo em que Joana conseguiu conquistar sua supremacia. Reconhecia várias letras nos livros coloridos, e alegrava-se com elas. Encontrava a letra do próprio nome, olhava para mim e se extasiava na descoberta de um novo mundo conquistado — a conquista sem sangue das naus portuguesas, com o sorriso que eles, diante de maravilhas, jamais devem ter esboçado.

Passaram e esqueceram-se de quase tudo, é claro. Quanto a mim, procuro amor em outras fontes.

--

--