Kate Chopin: A história de uma hora — tradução

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
Published in
5 min readAug 1, 2024
Kate Chopin, circa 1876
Missouri Historical Society / public domain

A história de uma hora

Ao saber que Sra. Mallard foi acometida por um problema cardíaco, muito cuidado foi tomado para comunicá-la da maneira mais serena possível o falecimento do seu marido.
Sua irmã Josephina, com a voz embargada, havia lhe trazido a informação; ocultando as pistas que lentamente fora se desenrolando em meio às palavras. Próximo a ela também estava o marido de seu amigo, Richard. Era ele quem estava na redação do jornal quando o serviço de segurança da ferrovia noticiou sobre o desastre, trazendo o nome de Brently Mallard na lista de mortos. Teve tempo de assegurar-se da sua veracidade apenas na segunda carta, em seguida apressou-se para impedir que algo de menos cuidadoso acontecesse: o amigo mais insensível comunicar a triste mensagem.
Ela, ao contrário de muitas outras mulheres, não recebeu a notícia da mesma forma. Estava paralisada e incapaz de aceitar, digerir a informação. Chorou de imediato, descontrolada e a prantos nos braços de sua irmã. Quando o mar de tristeza por si cessou, caminhou solitária em direção ao quarto. Desejou privacidade.
Permaneceu ali parada, diante da janela, numa poltrona confortável e espaçosa. Nela se afundou, pressionada por uma agitação física que afligia seu corpo de maneira profunda, quase à alma.
No parque em frente à sua residência, podia observar o ramal das árvores que vibravam com a nova vida primaveril. O delicioso frescor de chuva preenchia o ar. Na rua abaixo um ambulante comercializava suas mercadorias. As notas de uma canção produzida por alguém distante alcançou-a tenuamente, e os incontáveis pardais gorjeavam sobre os rebordos. Manchas de céu azul apareciam aqui e acolá entre as nuvens que se agrupavam uma sobre as outras ao oeste, diante da sua janela.
Sentou-se com a cabeça retrocedida sobre a almofada da poltrona, sem esboçar expressões até um soluço despontar pela sua garganta e sacudi-la, como uma criança que chorou até o adormecer e continua a soluçar em seus sonhos.
Era jovem, rosto calmo e sereno, cujas rugas de expressão denotavam uma certa repressão e força. Agora, uma apatia recaía sobre sua feição. O olhar fixado para bem longe, direcionado àquelas manchas de céu azul que pairavam entre as nuvens, não era um sinal de reflexão. Muito pelo contrário, uma indicação inteligente de suspensão de juízo.
Havia algo caminhando em sua direção, e, amedrontada, esperava. O que estava ali? Não tinha certeza; era sutil e fugaz o bastante para ser nomeado. Mas sentia, vindo do céu e se espalhando lentamente, alcançando-a através dos sons, dos aromas, das cores que preenchiam o ar.
Seu peito palpitava freneticamente. Começava a reconhecer essa coisa que gradualmente se aproximava para possuí-la, e lutava com sua força de vontade – tão fraca quanto suas duas mãos pálidas e esguias – para mantê-la afastada de si. Aceitando a derrota, um pequeno murmúrio escapou dos seus lábios levemente entreabertos. Sobre sua respiração espaçada proferia a seguinte palavra: “Liberdade!” tornando-a repeti-la. Um fervor cintilava sobre si. Seus pulsos batiam freneticamente, enquanto seu sangue quente percorria cada espessura de seu corpo, proporcionando uma sensação de relaxamento.
Seus questionamentos por vezes não cessavam: uma alegria monstruosa havia me irrompido? Uma percepção clara e apurada a permitiu descartar aquela sugestão como banal. Ela sabia que choraria novamente quando o visse, as mãos macias envoltas na morte, o rosto que nunca pareceu salvo com amor sobre ela, fixo, pálido e morto. Mas viu, além daquele momento de dor, a longa procissão de anos que absolutamente aguardavam por ela no futuro. E então abriu seus braços, esticando-os como sinônimo de boas-vindas.
Não haveria para quem viver durante os anos que sucederiam; dedicaria sua vida apenas a si. Muito menos a necessidade de se curvar diante de alguém mais poderoso, nessa persistência insana com a qual homens e mulheres acreditam ter o direito de impor sua vontade sobre o desejo alheio. Naquele instante de iluminação, observou que a melhor ou cruel intenção não fizera do ato um crime como tal.
Mas ela ainda o amava – às vezes. Eram poucas ao que parecia. O que importava! Poderia o amor, esse mistério não resolvido, obter um mérito intrínseco na posse da autoconfiança que ela reconheceu como a força motriz de sua existência naquele momento?
“Livre! Corpo, mente e alma livres!” continuava a murmurar.
Josephine estava ajoelhada diante da porta fechada com seus lábios voltados para o buraco da fechadura, implorando por um sinal de acesso. “Louise, abra a porta imediatamente! Eu imploro, abra a porta – você adoecerá. O que você está fazendo, pelo amor de Deus? Louise, abra a porta!”
“Vá embora. De modo algum adoecerei.” Não; ela estava provando do elixir da vida por meio da brisa que percorria pela janela aberta.
Sua alma vagava despretensiosamente pelos dias que a sucediam. Dias floridos, dias ensolarados, todos os tipos que dias que seriam seus. Ela então proferiu uma breve prece para que a vida pudesse ser longa. E somente no dia anterior, assustada, se deu a pensar na possibilidade de sua longevidade.
Levantou-se lentamente e abriu a porta diante das tentativas falhas de sua irmã. Seus olhos refletiam um júbilo incandescente, e de maneira despretensiosa se comportou como Niké, a deusa da vitória. Com firmeza agarrou-a pela cintura, e juntas desceram as escadas. Richard ali permaneceu, aguardando por elas no cômodo inferior.
Um tilintar de chave ecoou. Alguém tentava abrir a porta. Era Brently Mallard, que, desgastado pela viagem, entrou segundo depois apanhando sua mala de mão e guarda-chuva. Estando afastado da cena do acidente, não tinha conhecimento de que lá também havia acontecido um. Ficou em choque ao ver o grito angustiante de Josephina, que soluçava a prantos; e o rápido movimento de Richard que tentava protegê-lo ao desviar a visão de sua esposa.
Quando os médicos então chegaram, a causa da morte foi informada: cardiomiopatia de takotsubo – aquela síndrome cuja emoção intensa é capaz de matar.

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Lucas Carneiro
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Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.