Lápis

Tatá Noel
Revista Mormaço
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3 min readFeb 1, 2024
Foto de Eduardo Soares na Unsplash

Que mania que ela tinha. Botava a língua para fora e molhava a ponta do lápis antes de rabiscar no papel. Aos meus 5 anos eu já me perguntava por que fazia isso. Nunca perguntei a ela. Só ficava cheia de olhos grandes olhando seu perfil. Aquele rosto manso e bondoso concentrado no desenho. As rugas na testa sempre estiveram lá, daquele jeitinho mesmo. Com a toalha no ombro e os rolinhos na cabeça, via minha vó como deus a trouxe ao mundo. Aliás, como eu a trouxe ao mundo. Minha vida inteira ela havia sido exatamente assim, de chinelos rosas e saia florida até os joelhos. Vovó sempre foi assim, e sempre será. Não lembro dela de outro jeito. Nunca cogitei haver outra Dalvinha que não a que tinha pés de galinha no canto dos olhos, e pintinhas de sobra nas costas da mão. Pudim de leite ela que tinha inventado, e embora até hoje eu bata o pé no chão durante os almoços em família que ela botava sim ameixa em calda, isso pouco importa. O que importa é o pratinho duralex azul que ela usava pra botar a fatia caprichada do seu amor pra gente.

A panela de feijão apitava e ela corria pra abaixar o fogo. Ajoelhada na cadeira da cozinha, eu me espichava encima da mesa, ignorando os reclames dela pra não quebrar o vidro que isso machuca, e espiava o desenho da vovó. Que homem simpático é esse vovó? De chapeuzinho e palito na boca. Não é palito, Chica, é charuto. Charuto. Como escreve? C-h-a-r-r… só um r. Vovó, o feijão fica pronto?

Ela tinha cheirinho de vó. Vovó vamos brincar de varrer o jardim? Quando tinha pouco tamanho, a varanda era uma floresta. A qualquer momento onças poderiam aparecer entre as folhas, e macacos encima dos galhos. Era preciso muita atenção e observância. Cuidado vovó! Um cobra! A mangueira parecia uma anaconda. As flores da bougainville combinam com as unhas rosas da vó. As murchas iam pra pá de lixo. As bonitas eu catava com a mãozinha pequena de criança. Guardava pra um presente surpresa. Ela nunca vai adivinhar. Agora era um prato duralex maior. Arroz e feijão. O melhor feijão do mundo. Não, do universo. Não, de todos os tempos. Vovó, tempos é maior que universo?

Quando se come amor, a barriga fica quentinha, e a gente se sente satisfeita. Alimenta a alma e o corpo, sabia? A geladeira da vovó sempre tinha amor. Vovó, tenho uma surpresa, adivinha. Vovó sempre gosta de ouvir minhas descobertas. O que seria de vovó sem eu pra mostrar como se dá cambalhota? Eu nunca perguntei por que ela fazia aquilo, mas nunca entendi. Peguei o lápis, e com a língua pra fora, passei a ponta nela. Que gosto estranho de metal.

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