Leia trecho do romance de Carla Guerson, “Todo mundo tem mãe, Catarina”

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
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5 min readAug 1, 2024

Volto pra casa morrendo de medo do brigueiro que vou levar. Meu plano original era cabular a última aula pra ir na casa de Marilena. Inventei pra Vó que precisava ficar na escola para um trabalho, pretendia voltar no ônibus das três da tarde e chegar antes de encerrar o expediente dela, sem precisar falar nada sobre a visita. Só não contava com aquela tal reunião que demorou pra caramba e eu ainda tinha uma vida inteira pra saber.

No caminho, ensaio as desculpas. Explicaria pra Vó, o trabalho atrasou, me distraí, fui lanchar com uma amiga. Que amiga? Eu quase não tinha amiga. Com Katiuscia, pensei numa colega que ela não conhecia. Me distraí, Vó — ela sabia que eu era distraída. Ia me oferecer comida, eu não podia comer porque tinha saído pra lanchar, era essa a história, era importante manter. Eu sempre fui péssima mentirosa, não podia me entregar.

Entro no Paraíso e de longe percebo que minha avó não está sozinha em casa. As luzes todas acesas e as janelas abertas denunciam visita, a Vó gosta de apagar tudo pra economizar e as janelas só ficam abertas de dia que é pra não dar mosquito. Me aproximo da porta de entrada, que também está aberta e vejo que a Vó está em pé, no meio da sala, dentro de um círculo com mais sete mulheres de olhos fechados. Cada uma delas tem uma Bíblia na mão esquerda, a mão direita estendida em direção à Vó, no centro da roda formada no vão estreito entre o sofá e a tevê. Todas falam ao mesmo tempo, menos a Vó, que, de olhos fechados, chora.

Sem saber distinguir o que diz cada uma, pesco palavras como “Misericórdia”, “Aleluia”, em meio a muitos suspiros: ouve tua serva, Senhor, todos os inimigos cairão por terra, pelo sangue de jesus. De longe, parecem que falam todas ao mesmo tempo, mas quando presto mais atenção percebo que tem uma líder. É uma senhora, está com um vestido cinza-claro com estampa de flores pequenas e mangas três quartos. Ela fala alto, tem uma voz imponente, me lembra uma política em cima de um palanque. Ela fala e as outras repetem, alternando com um Amém cheio de ar: Livra, senhor. Livra, senhor. Livra tua serva da vergonha. Livra tua serva da vergonha. Pelo sangue de Jesus. Pelo sangue de Jesus. Livra essa casa do engano. Livra essa casa do engano, Senhor! Livra tua serva do engano, da feitiçaria, da mentira. Livra, Senhor! Livra tua serva da prostituição, da pornografia, do homossexualismo. Livra, Senhor! É pelo teu nome que clamamos, senhor. Sim, senhor! Pelo teu santo nome! Amém, Jesus! — as vozes ficam mais altas e emocionadas. Dez mil cairão de um lado, dez mil cairão de outro e sua serva não será atingida. Livra, senhor! O senhor dará ordens, para os teus anjos, para proteger essa casa, para livrar tua serva! Manda teus anjos, Senhor!

No centro da roda, a Vó continua de olhos fechados, abraçando forte a Bíblia que guarda a foto de minha mãe. Em nome de Jesus, pelo poderoso sangue de Jesus é que clamamos — vocifera a mulher, agora em ritmo mais lento, mas igualmente alto. Dessa vez ninguém a repete. Abrem os olhos e dizem em uníssimo: Amém, e nessa hora Vó Amélia olha bem em minha direção e finge que não me vê.

Eu continuo na porta daquela casa que não parece ser a minha. A Vó foi rumo à cozinha, seguida por duas das mulheres. Outras três sentaram-se no sofá, uma está em pé perto da janela. A moça do vestido cinza com flores vem na minha direção e me estende a mão: Olá Catarina, eu sou Shirley. Ouvimos falar muito de você. É um prazer te conhecer. Aperta a minha mão bem firme: Venha, entre, nós vamos lanchar agora.

Eu entro. Como uma convidada, na minha própria casa. Não sei quem são essas mulheres. Tem um bolo de cenoura em cima da mesa, eu reconheço o bolo de cenoura da minha avó. Elas pegam os pedaços de bolo com as mãos, do lado os pratinhos duralex intactos. A Vó não gosta que coma com as mãos, por conta do farelo, mas não está prestando atenção. Vai dar formiga, o farelo — falo baixinho. Elas não estão me ouvindo. A Shirley se vira pra mim: o que foi, querida? Venha, pegue um pedaço.

Não, obrigada, eu já comi — respondo, lembrando da coerência. Eu já comi, eu estava com uma amiga lanchando, eu tinha preparado todas as desculpas que a Vó não se preocupou em ouvir. A Shirley me coloca um copo de refrigerante nas mãos e me aponta uma das cadeiras da mesa. Sento e ouço ela me contar algo sobre sua filha, ela tem uma filha, um pouco mais velha do que eu. Lá na igreja tem muitos outros jovens da minha idade, eu ia gostar. Me pergunta da escola, do trabalho, da minha vida, mas não são perguntas de verdade, todas as perguntas são respondidas por ela mesma, emendadas uma na outra e eu só preciso fazer u-hum e ela continua sem parar, por alguns minutos, até que o bolo acaba, e não sobrou nem o farelo, o bolo acaba e elas somem todas juntas, com potinhos de margarina na mão, os embrulhinhos que a Vó fez. Elas saem e fecham a porta e a Shirley vai com elas e eu fico.

Ficamos eu e a Vó, na cozinha. Ela termina de arrumar a mesa, cata os pratinhos que não foram usados e guarda. Lava a vasilha do bolo. Varre o chão, devagar. Nenhum sinal de cara feia. Eu ainda com o copo na mão. Vai tomar, filha? Respondo que sim com a cabeça. Passa uma água quando terminar. Levanta com ar de cansada e vai deitar.

Carla Guerson (@carlaguerson) nasceu em Vitória/ES. Formada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, escreve em verso e prosa e é autora dos livros O som do tapa (ed. Patuá, contos, 2021) e Fogo de Palha (ed. Pedregulho, poesia, 2022). Todo mundo tem mãe, Catarina é o seu primeiro romance (ed. Reformatório, 2024).

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