Li-Young Lee: entre identidade, memória e condição humana — três traduções

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
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7 min readMar 4, 2024
Photo: Donna L. Lee

Li-Young Lee (1957-) é um poeta estadunidense nascido na cidade de Jakarta, Indonésia. Oriundo de uma próspera família chinesa, migrou-se aos três anos na companhia de seus pais e irmão, atravessando territórios como Hong Kong e Macau até se estabelecer de maneira definitiva, em 1964, nos Estados Unidos da América.

As primeiras incursões de Lee para com a poesia tiveram início ainda na infância. Em uma entrevista concedida ao jornalista Bill Moyers, durante o programa The Language of Life: A Festival of Poets (1995)[1], o poeta relembra sua introdução no mundo da leitura. Seu pai, Yuan Shikai, dado a educação clássica chinesa submetido, costumava recitar com frequência os poemas da Dinastia T’ang. E, numa tentativa de buscar uma reciprocidade entre fala e escuta, educava seus filhos a memorizarem e recitarem-nos de volta.

Lee aponta que nunca se saíra bem nesse exercício. No entanto, os poemas apresentados pelo seu pai despertavam em si uma paixão pela poesia — vista em seu imaginário como uma arte destinada apenas aos poderosos anjos e antigos mortos da China. Mais tarde, ao adentrar na Universidade de Pittsburgh e conhecer o então poeta Gerald Stern, Lee percebeu que a poesia era uma forma de expressão destinada a todos, seja vivo ou morto. Assim deu início a sua trajetória como poeta, tendo a figura de Stern como seu mentor.

Muito influenciado pelas leituras de autores clássicos da literatura chinesa como Li Bo e Tu Fu, e também pelas poesias de Emily Dickinson e William Blake, Lee desenvolveu um corpo de escrita bastante expressivo. Suas composições líricas são fortemente marcadas pelo uso do silêncio e da memória. Seus poemas inflexionam temáticas que flertam com a mortalidade e transcendência, ancestralidade, identidade e (des)pertencimento, de modo a revelar as vicissitudes da condição humana em perspectivas universais.

Seu livro de estreia Rose (1986) [2], vencedor do Delmore Schwartz Memorial Poetry, obteve uma recepção positiva por parte da crítica. O tom melancólico e profundo que se apresenta em uníssono as simbologias inscritas nos poemas, capturam a atenção do leitor, cujo resultado é um caminhar em direção ao the pregnant silence — modalidade de silêncio que, para Lee, surge quando o intérprete é impactado pela palavra poética. Logo, sem nada a dizer, cala-se em tom contemplativo, imerso na profundidade da catharsis gerada pela experiência poética.

Sua segunda coleção de poesias, intitulada The City in Which I Love You (1990) [3], é vista pelo público como uma das obras mais belas do autor. Os poemas que integram o volume articulam de maneira aprofundada os temas da memória, identidade e pertencimento. As imagens que compõem algumas das tessituras líricas de Lee em seu trabalho, emergem como um reflexo das experiências vivenciadas por um eu lírico asiático-estadunidense ao longo do seu processo de deslocamento forçado em busca do acolhimento humanitário necessário.

A terceira obra poética de Li-Young Lee, intitulada Book of my Nights (2001)[4], e vencedora do Poetry Society of America’s 2002 William Carlos Williams Award, dá continuidade às temáticas exploradas pelo poeta em seu trabalho anterior. O título que batiza a coleção, por si, materializa em seu cerne o efeito prático em que o poema, para Lee, ganha forma e corpo: o turno noturno. A simbologia da noite, em alguns poemas que integram a obra de Lee, surge como um reflexo da solidão, da contemplação e necessidade de autoconhecimento por parte do eu lírico como forma de compreender seus anseios, medos e angústias — e inflexionar, por meio da linguagem (poética), o silêncio que se apresenta internalizado em seu plano mais íntimo.

Em Behind my Eyes (2008) [5], quarto livro publicado pelo poeta, Lee examina de modo substancial as experiências e os percalços vivenciados pelos migrantes. Subdividido em três seções, os poemas que compõem o volume de poesias em questão articulam temáticas tais quais amor, espiritualidade e identidade. Uma característica central dessas produções reside nos diálogos íntimos e sólidos entre duas vozes líricas que se entrelaçam pelos versos em um fluxo de idas e vindas sem que exista, sobretudo, um destino claro. Nos poemas cujo tema central focaliza as experiências dos migrantes, Lee se vale de imagens sensíveis e emotivas para refletir as longas jornadas vivenciadas por esses pares, sempre com perspectivas antenadas a deflorações de violências civis e desapropriação de direitos humanos.

Para esta (breve) apresentação, selecionamos uma tradução de três poemas representativos do poeta que compõem sua terceira coleção “Behind my Eyes.” Com isso, espera-se que os leitores sejam profundamente tocados pela mensagem universal e atemporal que ressoa de sua poesia, permitindo-lhes mergulhar a fundo no potente trabalho que vem sendo realizado por Li-Young Lee desde 1986.

Autoajuda aos membros refugiados

Se seu nome
sugere uma nação onde os sinos
poderiam ter sido utilizados para entreter,
ou anunciar
as chegadas, saídas das estações
e aniversários dos deuses e demônios,
talvez seja melhor trajar-se em roupas simples
quando chegar aos Estados Unidos.
E, tente não falar tão alto.

Se aconteceu de você presenciar homens armados
espancar e arrastar seu pai
para fora da varanda de sua casa
e em direção aos fundos de um caminhão ocioso,
antes que sua mãe te puxasse do rebato
E enterrasse seu rosto em sua saia dobrada,
tente não a julgar
tão ferozmente. Não pergunte
o que ela estava pensando em fazer
ao desviar os olhos de uma criança
para longe da história
em direção ao lugar onde toda dor humana se inicia.

E se um dia você conhecer alguém
no seu país adotivo, e acreditar
que enxerga no rosto do outro um paraíso,
alguma promessa de um novo começo
é provável que signifique
que você se encontre demasiado distante.

Ou se você pensa ter lido
no outro, como num livro
cujas primeiras e últimas páginasestão perdidas,
a história de sua própria terra natal, uma nação
duplamente apagada
primeiro pelo fogo, segundo pelo esquecimento
é provável significar que estás demasiadamente perto.

Em qualquer caso, tente
não deixe o outro carregar
o fardo de sua própria nostalgia ou esperança.

E se você for o único deles
cujo lado esquerdo da face não corresponde
ao direito, isso talvez signifique uma pista.
Observar o outro lado era um hábito
que seus predecessores acharam útil para sobreviver.
Não lamente
Mesmo não sendo bom o suficiente.
Acostume-se a ver, embora não veja.
Ocupe-se em lembrar
Embora esqueça. Morrendo para sobreviver,
Embora não queira prosseguir.

Muito provavelmente, seus ancestrais decoravam seus sinos
De todos os moldes e tamanhos
Com calendários elaborados e diagramas
de constelações estrelares meramente distantes,
com exceção de mapas
para descendentes dispersos.

E eu aposto que você não consegue dizer
em que língua seu pai falava
quando gritava para sua mãe,
da parte frontal do caminhão, “deixe o menino ver!”

Talvez não fosse o idioma do nosso ambiente familiar.
Talvez fosse em uma língua esquecida.
Ou talvez houvesse muito clamor
Lágrimas
E estilhaços de armas nas ruas.

Isso não importa.
O que importa é o seguinte:
O reino dos céus é bom.
Mas o céu na terra é melhor.

Pensar em bom.
Mas viver é melhor.

Solitário
em sua poltrona favorita
com um livro do seu gosto
é bom. Mas estar abraçado
é ainda melhor.

(Tradução de Lucas Carneiro, 2023)

Immigrant Blues

As pessoas têm tentado me matar desde quando eu nasci,
um homem gesticula ao seu filho,
tentando explicar a sabedoria que é aprender uma segunda língua.

Essa é uma velha história do século XX
Entre meu pai e eu.

A mesma velha história da manhã de ontem
entre mim e meu filho.

Chamada “Formas de Sobrevivência
E a Melancolia da Assimilação Racial.”

Nomeada “Paradigmas Psicológicos de Sujeitos Deslocados,”

designada “A criança que Prefere Brincar a Estudar.”

Pratique até que sinta
a língua em seu âmago, diz o homem.

Mas o que ele sabe entre interior e exterior,
meu pai que não foi poupado de nada
apesar das línguas utilizadas?

E eu, confuso de carne e alma,
que certa vez perguntou via telefone
Habito em ti?

Você está sempre em mim,
uma mulher respondeu,
descontraída com a finitude do corpo
em paz com a alma desprezada
entre tempo e espaço.

Eu estou no seu interior? Perguntei uma vez
deitado em seu colo, confuso
de corpo e alma.

Se não acreditas que jaz em mim, você não está,
respondeu ela, em paz com a avidez do corpo
em sintonia com o coração hesitante.

Essa é uma antiga história da noite de ontem

intitulada “Formas de amor em Povos da Diáspora”
chamada “Perda da Terra Natal
e a Profanação do amado,”
designada “Eu quero cantar, mas não sei nenhuma canção.”

(Tradução de Lucas Carneiro, 2023)

Após as Cinzas

Acontece que, o que te mantém vivo
como uma criança na metade século
que segue seus pais cruzando aldeias
e cidades em chamas em direção a um país em guerra
consigo e qualquer um que se aparenta como você,

que te permite atravessar entre fumaças,
multidões armadas vangloriando os méritos do novo regime, dente
por dente
liberação pela purificação, disseminação
global do amor das ciumentas divindades,
golpe de estado, golpe de misericóedia, e o murmurar das mães
pombas e homens clamando
e crianças enclausuradas nas correntes ascendentes da pira,

o que te mantém salvo mesmo entre seus pares,
o traumatizado, o assombrado, o amputado, o quase morto

truques que você aprendeu para se tornar invisível,
perfeita fuga, fingindo de morto, bancando o bobo,
jogando às cegas, inaudível, fraco, forte
brincando ora como menina, menino, nativo, estrangeiro
apaixonado, apático, outras bancando o louco, lúcido, sacro, devasso

Ora assustado, destemido, feliz, triste, sonolento, despertado,
simulando o interessado, fingindo o entediado, ferido
disfarçando “Bem, estou bem,” acontece que

agora que estás maduro
na entrada do século que se inicia
o que manteve você vivo
são todos os anos que te impedem viver.

(Tradução de Lucas Carneiro, 2023)

Notas bibliográficas:

[1] LEE, Li-Young. Breaking the alabaster jar: conversations with Li-Young Lee. BOA Editions, Ltd., 2015.

[2] LEE, Li-Young. Rose. BOA Editions, Ltd., 1986.

[3] LEE, Li-Young. The city in which I love you. BOA Editions, Ltd., 1990.

[4] LEE, Li-Young. Book of My Nights: Poems. BOA Editions, Ltd., 2001.

[5] LEE, Li-Young. Behind My Eyes: Poems. WW Norton & Company, 2008.

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Lucas Carneiro
Revista Mormaço

Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.