LITERAPIA

Matheus Peleteiro
Revista Mormaço
Published in
4 min readApr 15, 2021
“Paperback Writer,” por Duncan Roberts

Samuel andava incomodado com a vida desde que Clara, a quem se referia como a mulher da sua vida, o deixou e foi viver com um empresário milionário que conheceu na internet e podia lhe proporcionar uma qualidade de vida muito mais confortável, com direito a condomínio de luxo, carro importado, filho em colégio bilíngue e outras regalias inerentes aos privilégios de classe do burguês brasileiro.

No dia da despedida, ao mesmo tempo que Clara fazia as malas e partia sem sequer hesitar ou enxugar alguma das suas tantas lágrimas, Samuel se afundou numa sofrência intencional. Pôs clássicos contemporâneos para tocar no fone de ouvido, e chorou ao som de Tim Bernardes, Johnny Hooker e Leoni. Após, foram dias de lamento e irresignação. Buscou psicólogos, psiquiatras, pais de santo, cartomantes, ombros amigos, mas quem o ajudou mesmo foi Dona Cecília, sua vizinha gateira, que, ao notar o seu desamparo e solidão, sugeriu que começasse a colocar no papel os seus conflitos internos e a suas angústias.

Então, Samuel começou a escrever livros-diários a lamentar a respeito da sua própria existência. Fragilizado e sem coragem para culpar a imprecisão do amor ou o seu idealismo, direcionou o seu sofrimento a um autopenitente julgamento onde se punha como réu. Condenou-se por ser bondoso demais, argumentou que o seu erro fora confiar nas pessoas e se convenceu de diversas outras mentiras convenientes que ajudavam a tornar a situação um pouco mais suportável.

Depois, passou a escrever relatos verdadeiros camuflados em indiretas e unidos a citações clássicas, onde se mostrava decepcionado e dizia ser tudo terrível. A partir daí, teve coragem de se expor nas redes sociais e foi surpreendido com dezenas de mensagens de apoio escritas por pessoas que já haviam vivenciado frustrações similares e se sentiam impelidas a ampará-lo diante do tão infeliz momento da sua vida.

Começou a anotar o que fazia, exagerar as emoções triviais e rotineiras que o acometiam, superestimar o café que bebia, separar as sílabas das palavras para misturar significados, e não demorou para que Samuel percorresse o itinerário comum a todos que são despertados pelo chamado da literapia e se tornasse um tradicional poeta do século 21, que camufla o seu fiasco e a sua frustração sob a máscara da melancolia, e desenvolve a sua voz numa direção quase preordenada, dissimulada no discurso da novidade. Utilizou-se de recursos batidos para expressar a sua sensação de derrota e vazio e, através de metáforas de afogamento, poemas que terminavam com maneiras bonitas de dizer que sentia já não existir ou versos estruturados a fim de dar ideia de que o poeta estava desaparecendo aos poucos, tornou-se uma referência para o nicho dos escritores que tinham uma rede de promoção onde se promoviam uns aos outros.

Primeiro, denominou-se poeta; depois, escritor e, desse modo, começou a publicar livros e divulgá-los por meio da perfeita união entre o dinheiro e as redes sociais.

Do ponto de vista técnico ou filosófico, a sua obra oscilava entre uma tragédia e mais do mesmo, entretanto, ao lerem-na, os seus amigos a acharam o máximo. Todavia, tal entusiasmo não se dava por conta do conteúdo ou pelo que a leitura lhes acrescentava, mas porque adoravam saber mais sobre a vida dos outros, sobretudo quando estes outros eram indivíduos conhecidos ou pessoas próximas.

Após o seu aparente sucesso, disseminado por jornais locais e compartilhamentos de influencers ativistas, Guilherme, Rafael, Maria e Zé Miguel, seus amigos próximos e entusiastas do livro, gostaram da ideia e iniciaram, individualmente, produções parecidas. Passados alguns meses, a produção de literapia, já antes fundada e então impulsionada, alcançou um maior número de adeptos, fazendo com que centenas de sujeitos sem contato algum com a arte da escrita a utilizassem com interesses terapêuticos, passando também a escrever diários pessoais designados como romances ou coletâneas poéticas. Rapidamente a literapia assumiu um lugar de destaque em critério de visibilidade, ofuscando até mesmo o brilho de magistrais obras literárias, e motivando Samuel a utilizar os seus perfis recheados de seguidores para se manifestar em oposição à repentina falta de interesse do público em relação à leitura. No entanto, ninguém o escutou.

Com todos ocupados relatando os seus próprios conflitos em diários, os livros se encheram de ácaros e passaram a amargar a solidão das prateleiras. A mesma solidão que Samuel amargara ao ver a sua amada abandoná-lo para ir embora com um magnata.

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