luto

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
5 min readNov 1, 2022
“Cabeza y Mano” — Oswaldo Guayasamín

Ser mãe é perder toda a sua liberdade, viu? Ave Maria! Agora eu vou ficar é assim: . Preferia quando eram pequenas, preferia mesmo, não vou mentir. Quando não falavam, quando só babavam e eu tinha que fazer absolutamente tudo, lá no “quando eu era necessária”.

Sabe uma coisa que é fácil? Perdoar um filho. Deus é quem sabe, eu sou incapaz de ser ríspida demais com essas meninas, elas são as partes de mim que eu trato com mais delicadeza, nem com a minha própria mãe eu sou tão tolerante.

Hoje elas disseram que iam numa festa, sabe essas festas com metade do nome em inglês e a outra metade do nome em português? [a mãe diz o nome da festa].

Nossa Senhora não tinha que se preocupar com isso, mas eu tenho.

[suspira]

Não sei se é verdade, a gente nunca sabe onde que essas meninas estão enfiadas: a gente diz e acha que conhece porque saiu daqui de dentro [apoia as mãos no útero], porque a gente que gerou, a gente que fez pé, cabeça, sistema nervoso, a gente que alimentou, a gente que criou… é nosso e se é nosso a gente conhece melhor do que ninguém, não é assim? Não fui eu quem interpretei todos os primeiros choros? Não são minhas filhas? Por Deus, não sei se essa festa é mentira ou verdade, mas se não for verdade, é uma boa mentira.

[a voz sai mais baixa]

Eu sei que é mentira.

[faz uma pausa, respira fundo e começa a estalar os dedos das mãos]

Mãe é idiota. Mãe é pegajosa.

[mais uma pausa. estala a língua]

Eu sei que elas falaram que iam ligar quando chegassem sabe lá Deus onde, mas e se teve um acidente de carro e elas foram parar no Nina Rodrigues? Eu sei que só tem 15 minutos que saíram, mas não é tempo suficiente não? Acidente não acontece só com os outros, você sabe, a gente tem essa mania [som do zíper abrindo] de achar que [ela vasculha a bolsa] coisa ruim só acontece com os outros, mas na verdade [fala encarando o celular, a luz do aparelho reflete nos óculos] pode acontecer com qualquer pessoa.

Eu vou ligar, é rapidinho, viu?

— Oi, Bela… Não, eu só liguei para saber se vocês já chegaram e se chegaram bem… Sim minha filha, você disse que ia avisar mas demorou, e você esquece as vezes também, não precisa essa grosseria… cadê sua irmã, me deixe falar com ela aí… como é que não pode falar comigo agora? Passe o telefone para Bruna agora, Isabela….“o que foi?” não, não é assim que você fala com sua mãe não Isabe… Tá bom então. Avisem quando chegarem. Ta bom, um beijo.

Liguei. Tá tudo bem.

Acho que é só eu quem me preocupo. Quando meu ex marido transou comigo, ele fez questão de inserir junto com o esperma uma preocupação que se desenvolveu bem aqui dentro [aponta para o útero] e foi se espalhou por todos os meus poros, de dentro pra fora. Veio a primeira junto com a preocupação, como se eu tivesse gerado as duas mas quando veio a segunda, a Preocupação parece que me gerou. É o que me governa: Preocupação e medo.

Medo de morrer: tem gente que não tem, né? Mas é um medo que te corrói quando você segura o corpo miúdo do ser que saiu de dentro de você. Se eu morrer, quem é que vai cuidar dessa vida? Desse pedaço de vida que saiu de dentro de mim? E o medo vai crescendo e o medo aprende a engatinhar, depois a andar, depois falar, do nada o medo está te respondendo e não te respeita, o medo diz que você não manda nele e quer independência.

É muita coisa. É muito medo. E eu sinto e sinto muito e sinto sozinha, como eu disse, o pai tirou dele, plantou em mim e é por causa disso que ele é pai e eu sou mãe. E os três ficam lá e eu aqui. E elas querem morar com o pai e eu finjo indiferença, mas grito NÃO e ninguém me reconhece. Ele não me reconhece como mãe e eu só queria isso: reconhecimento. Elas também nunca me deram isso.

Aí nesse meio tem outro medo também, o medo delas terem a minha sorte (o meu azar) de encontrar um Luiz Carlos. Luiz Carlos é o nome do meu ex-marido, não sei se você conhece. A mais nova agora tá com um namorado e também tá com a mesma idade que eu tinha quando… Eu sei que ela tá feliz mas é que você sendo mãe jamais quer ver sua filha passando pelo seu maior trauma na vida e aquele homem é isso: meu câncer, um tumor que eu fiz cirurgia para não morrer, mas que me deixou sem uma perna, sem um pulmão, sem um olho, sem um rim, tudo que eu tinha em dois ele cortou pela metade.

Depois ele voltou e soube virar pai, mas é que é fácil demais de amar um pai, e odiar uma mãe, sabe? Elas não lembram de mim sendo mãe sozinha. Quando ele foi embora, era só eu e Eu, só eu e Deus.

Quem ama, corrige.

Não é assim? Você não concorda comigo?

Quem ama, corrige sim.

Eu pela igreja sozinha e sem um Pai, sem qualquer pai: sem o meu e sem o delas, então na minha cabeça eu estava acertando, Deus sabe que eu estava, e quem pode dizer que eu não acertei?

Quem ama, corrige.

Sozinha com o medo de dar errado; foi horrível bater nas minhas filhas pequenas, foi horrível de pensar que elas estavam apanhando, me destruía ouvir o choro que eu causava. Não sabia o que era corrigir, mas quem ama corrige. E se a vida hoje bate nelas, o impacto é menor porque eu já fiz isso antes, eu preparei aqueles corpos para isso.

A mais nova disse que nunca me perdoaria. Ela olhou nos meus olhos e afirmou devagar: eu nunca vou conseguir te perdoar. Eu não sabia o que dizer. Naquele dia fui para o meu quarto e acho que nunca chorei tanto. Pedi perdão à Deus. Pedi que Deus perdoasse minha filha incapaz de me perdoar. Perdoa, Deus, sua filha incapaz perdoar a mãe.

Deus deveria ter sido mãe também para saber como é, né não?

[faz uma pausa. essa é maior que as outras.]

Será que eu vou parar de me sentir assim? Ou será que me acostumo com isso? Entende? Tem diferença. Luto para isso, luto contra isso, luto todo dia, luto porque vejo morrer: luto pelas minhas filhas vivas vivendo suas vidas longe de mim.

[a mãe encara um ponto fixo quase que sem piscar por um minuto inteiro. O celular, que manteve na mão direita vibra. Ela sai do transe]

Ah, ela tá ligando, deve ser para avisar que chegou. Eu vou atender, é rapinho, viu?

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