Marco Antônio

Hortência Siebra
Revista Mormaço
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3 min readMar 4, 2024
Imagem de <a href=”https://pixabay.com/pt/users/manfredrichter-4055600/?utm_source=link-attribution&utm_medium=referral&utm_campaign=image&utm_content=2050148">Manfred Richter</a> por <a href=”https://pixabay.com/pt//?utm_source=link-attribution&utm_medium=referral&utm_campaign=image&utm_content=2050148">Pixabay</a>

Todos os dias, no caminho do escritório para casa, eu passava sobre a linha do trem. Cada um atravessando no seu tempo, ele nunca me atrapalhou. Nunca até aquela sexta-feira. Não pela morosidade de seu trajeto, mas por causa de alguns pinos de ferro que se soltaram dele e, se juntando à minha desatenção, acabaram por atravessar dois dos pneus. O carro imediatamente baixou, não dava para chegar na borracharia. Encostei junto à linha, desci e, enquanto ligava para o reboque, caminhei até o meio dos trilhos.

Lembrei das aulas de física, fiquei procurando, no infinito, onde iriam se cruzar aquelas retas paralelas. Lembrei também daquele vídeo que o tio Joaquim passou. Na hora, achei bobagem, mas olhando assim, de fato, não havia nenhuma curvatura ali. A linha tanto a norte quanto a sul se estendia plana, isenta de desníveis ou inclinações.

O reboque chegou e peguei um táxi até em casa. No caminho, procurei no celular o vídeo. Nele havia esse argumento da linha de ferro e outras centenas de razões que faziam da Terra um lugar plano. Fiquei vendo, ouvindo e ponderando a razoabilidade de tudo aquilo. Eu mesmo nunca havia feito nenhum projeto de engenharia que levasse em consideração qualquer curvatura. A gente trabalha com os pequenos acidentes no terreno, mas são coisas simples que dá para aplainar. Cálculos e alicerces sempre fincados em linhas retas.

Quanto mais eu lia, mais eu tinha certeza que havia passado a vida inteira sendo enganado. Deve ter sido um complô muito bem armado entre a Nasa, aquele bando de comunista, os illuminatis e os reptilianos. Ainda bem que eu acordei: a Terra sempre foi e sempre há de ser plana. Mas só a certeza não me bastava. Eu queria ver as bordas da Terra.

Estudei sobre cartografia, contrariado com as mentiras nos documentos que, mesmo antigos, já traziam a falsa ideia do formato da Terra. Aprendi a pensar calculando em nós e em pés. Terminei meu curso à distância na Escola de Sagres. Vendi o carro. Por fim, comprei um veleiro. Na cabine, pendurei os diplomas de engenharia e de velejador.

Fazia sol no porto de Paranaguá. O plano de navegação inicial seria atravessar primeiro a corrente marítima das Malvinas, depois seguir pela Atlântico Sul e, por fim, continuar na corrente da Antártica até a Austrália. Na primeira corrente, me perdi. Sabia toda a lógica da teoria, mas a vida não respeita a lógica e as correntes são feitas de riscos.

Mesmo não sabendo os caminhos, eu segui. Tinha certeza que os ventos iam dar no final da Terra. Eu queria ancorar a alguns pés de distância da borda, ver a água escorrer bonita e descansar o coração na certeza. Os ventos que me levaram me trouxeram. Fiquei vagando de um lado pro outro no oceano. Ancorei o veleiro e daqui consigo ver o porto de Paranaguá. Ele se parece mais com o porto de Luanda do que com aquele distante no tempo, de onde saí.

Faz seis anos, sete meses e dezenove dias. Penso em voltar, mas sei que voltar sem ter chegado faz menos sentido do que partir. Não quero assumir um erro que não há. Sei que a Terra é plana e sonho todos os dias com a borda dela derrubando água no vazio. Puxo a âncora e giro o timão até o ângulo em que minha intuição aponta. Sob o casco, nos atravessa a corrente marítima das Malvinas.

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Hortência Siebra
Revista Mormaço

Autora do À Margem do Impossível (2021), do No sexto dia (2022) e dO inverno à tarde (2023)