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Hortência Siebra
Revista Mormaço
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12 min readJul 1, 2024
Imagem de Nathalia Cristina G Ribeiro Nathy por Pixabay

Estou no meio do relatório, acabei de checar a tela dois e estou indo para a tela cinco, mas todas elas desligam, ao mesmo tempo. Pego o celular, o Wi-Fi não está disponível, o 13G também não, nem há sinal de área. O gato chega no quarto e mia pedindo comida. Olho de novo o celular, mas não consigo ter acesso ao sistema de alimentação dele. Ele continua miando, caminha em direção à sala e, a cada passo, olha para trás, se certificando que eu estou indo junto.

O comedouro está sem sinal. Tem ração dentro, mas eu não consigo destravar. Talvez ainda tenha algum sachê no armário. Abro a porta e tem dois, o suficiente para hoje. Ele se enrosca entre minhas pernas. Sirvo metade de um sachê e ele se abaixa para comer. Vou até a janela e os veículos estão parados. Algumas pessoas tentam sair deles, sem sucesso. Outras andam em sentido aleatório. Elas se olham, mas parecem não conseguir conversar entre si. Os patinetes elétricos estão no chão. Os semáforos, apagados. O ar-condicionado, desligado.

O apartamento começa a esquentar. Talvez seja melhor descer e conferir o gerador. Passo o protetor solar e coloco o casaco térmico, o mostrador da manga direita marca 64 graus. Tento abrir a porta, mas a fechadura não tem sinal. Lembro que, quando vieram instalar, deixaram uma chave para casos de emergência, mas isso já faz oito anos. Talvez ela esteja dentro de uma das caixas organizadoras no closet.

Pego a primeira e acho alguns HDs antigos, fones, cabos, poeira. Na segunda caixa, fotos desbotadas de gente que já morreu, a família, eu criança, o casamento que terminou. O gato pula pela porta aberta e derruba a quinta caixa. Dezenas de chaves caem no chão. Elas estão divididas em argolas enferrujadas. Algumas têm pingentes que me levam aos seus porquês. O chaveiro do elefante de Olinda está com as chaves do meu antigo apartamento no Benfica. O com o símbolo da faculdade abria as portas do departamento de Literatura: o escritório do orientador, a sala de leitura, o banheiro. Aquele com conchinhas é da casa no Icaraí, que vendemos antes do avanço do mar. As chaves da casa da avó. As chaves reservas dos carros que minha mãe usou. Chaves minúsculas talvez do telefone fixo ou das antigas malas. Duas chaves juntas sem nenhuma identificação e outras três avulsas.

Seguro essas das que me falta memória e levo até a porta da sala. Tento uma por uma e só a última funciona. Deixo as outras sobre a escrivaninha, pego o celular e saio para ver o gerador e entender o que está acontecendo. O gato começa a arranhar a porta. Volto e ele me lança um olhar de súplica. Coloco a coleira e desço com ele pelas escadas. No saguão de entrada, estão seis pessoas. Todas as portas estão trancadas, inclusive a de acesso ao gerador.

Telma, do apartamento ao lado do meu, se aproxima e começa a contar detalhe por detalhe do que estava fazendo quando tudo parou, diz que desceu para ir buscar o Júnior na escola, mas descobriu que estávamos todos presos ali. Começa a chorar pelo filho e pelo marido, diz que todo mundo vai morrer e que não pode nem se despedir. Olho o celular e tem 30% de bateria. Telma é sempre muito cansativa. Para, Telma, só foi a energia que faltou, digo. Ela chora e me questiona o porquê disso. Digo que não sei de nada. Ninguém ali sabe de nada, ela diz.

Olho em volta. O hall de entrada. Numa ponta do sofá, uma mulher de branco está com os olhos fechados, mexe os lábios e segura um terço. Na outra ponta, um homem sentado se abana com o iPad. Ele parece o Roberto do 503, com quem eu tive um casinho de dois meses e que sumiu. Ele olha pra mim e desvia nervoso o olhar. É ele mesmo, esse brocha. Telma senta no chão e continua chorando. Olho para o casaco dela e vejo marcando 68 graus. Um casal de idosos está sentado perto da porta, nas poltronas de couro, cada qual com seu balão de oxigênio. Eles conversam entre si, riem às vezes, mas voltam a olhar o chão e se recolhem em suas fragilidades. Perto deles, uma babá tenta distrair a criança pequena, fica colocando e tirando ela do carrinho, mostra as pelúcias e aperta uma que faz um barulho agudo. A menina chora. Ela olha pra gente pedindo desculpa pelo choro da filha que não é dela. A criança repete algumas sílabas que só a babá escuta e entende. Ela responde que não dá, que não tem internet, e a menina começa a berrar.

Eu fico incomodada com o barulho e me viro em direção à escada. Telma me pergunta para onde vou. Digo que preciso ir em casa tomar água. Ela se oferece para ir comigo, eu agradeço, mas recuso a oferta. Telma nunca perderia a oportunidade de entrar no meu apartamento, mexer nas minhas coisas e fazer perguntas incômodas, forçando uma amizade que nunca existiu. A mulher do terço espirra, o gato se assusta e pula na trava da porta que dá acesso à escada. A obesidade dele danifica alguma peça. Não consigo destravar. Telma se levanta do chão e tenta me ajudar, ainda na esperança de subir comigo. A porta não se mexe. Ela vira e chama o moço, pede ajuda e Roberto vem. Eu me afasto deles dois e da porta. Roberto tenta com jeito, depois tenta com força. Nada.

O casal nos olha assustado. A mulher de branco continua de olhos fechados, mexe os lábios, mas agora segura o terço com mais força. Se usasse toda essa fé para destravar a porta, talvez eu já estivesse no meu apartamento. A fé sem obras é morta, tenho vontade de avisar, mas me recuso ao diálogo. A babá não percebeu nada dessa sequência, porque está tentando desvencilhar seus cabelos dos dedos miúdos da menina que grunhe e que até parece rir. Telma volta a sentar no chão e continua o seu drama, soluça. Tenho vontade de sentar do lado dela e de rir, como a menina ri, de toda aquela desgraça, mas os cabelos também são meus e é a minha cabeça que agora dói. Roberto tenta arrumar a porta com uma mão. Com a outra, ele enxuga a testa. Está quente, mas sei que o nervosismo dele é menos pela porta do que por mim. Esse era um bom momento pra você usar aquele truquezinho de desaparecer, mas aqui na frente dos outros você não consegue, né Roberto?

Isso não vai se revolver. É melhor sentar, minha coluna já está reclamando. Puxo o gato e ele não se mexe, está deitado e dorme. Insisto com mais força e ele acorda. Sento no lugar do meio do sofá. Com a proximidade, a tela do iPad ascende. Tem uma foto do Roberto abraçando um homem de barba espessa. A tela apaga. Olho em sua direção e ele está em pânico. Ah, Roberto, deixa de cena! Era só ter falado sobre o caroço e a fruta, que eu tinha entendido. Olho pro chão e começo a rir. A mulher do terço me reprime sem nada dizer. Paro de rir e ponho o gato no meu colo. Fico olhando para o seu pelo e vou deslizando as unhas da cabeça até o rabo. Ele agradece intercalando as patas, com amassos e roçar de unhas, sobre minha perna.

Roberto desiste da porta, pega o iPad e senta no chão. Mais uma vítima para o drama de Telma. A mulher de branco solta o terço e abre os olhos. Olha pra mim e diz que é Jesus voltando. Espero que ele nos não apareça de saia longa e com todos aqueles tecidos sobre os ombros, tenho vontade de dizer, mas só sorrio. Ela conta que está feliz por hoje cedo ter ido à missa, comungado e se confessado. Está certa de que garantiu o ingresso pro camarote do after. Eu sorrio, volto a olhar o gato e finjo bocejos. Pego o celular e ele está em 28%. Me acomodo no encosto do sofá e fecho os olhos. O gato começa a arranhar o mostrador do meu casaco. O ponho no chão e volto a descansar. A mulher de branco fala alguma coisa, mas me recuso a entender. Fecho os olhos.

Escuto um sai. Quando vejo, a babá está enxotando o gato para longe dos velhos. Os três analisam o tubo flexível que leva o oxigênio até a senhora. Não tem mais jeito, a babá sentencia e se oferece para ir buscar outro tubo. O senhor conta da porta travada, tira o oxigênio e oferece à esposa. Ela recusa, mas começa a tossir descontroladamente. A babá põe o oxigênio na senhora e a tosse começa a diminuir. Fico esperando a situação se resolver entre eles, só depois levanto, recolho o gato e amarro a coleira no extintor de incêndio. Volto ao sofá e sento na ponta, onde antes estava Roberto. Apoio as costas e fecho os olhos. Cochilo.

Acordo com o gato miando. Ele já está com fome outra vez. O celular tem 25% de bateria e continua sem nenhum sinal. A mulher de branco dorme e o terço está no chão. Telma está quieta, talvez tenha cansado de chorar e dormido também. Roberto me evita, jogando no iPad. O velho tem dificuldade de respirar, mas tenta disfarçar mexendo na bengala. A velha dorme. A babá continua de pé, canta uma canção de ninar, empurra o carrinho para lá e para cá e olha pra mim, como se pedisse silêncio. Solto o gato e o coloco nos braços. Ele mia e eu digo que não tenho o que fazer. Ele mia de novo. Meus lábios estão secos e a sede está insuportável.

Escuto alguém descer as escadas e chegar até a porta. Mexe nas chaves e dá três solavancos. Ela abre e é o síndico. O aspecto doentio está ainda pior, assanhado, a barba por fazer e os olhos cada vez mais proeminentes. Ele toma doses altíssimas de Citalopram com Zolpidem, descobri outro dia lendo os comentários de avaliação dele, no aplicativo da farmácia. Ele nos diz que acabou de acordar e que desceu para ver o gerador. Achou algumas chaves, mas não sabe cadê as das portas que dão acesso à rua. Telma levanta e começa a contar a mesma história para ele, o que estava fazendo antes de tudo acontecer. Ele para na frente dela, mas parece não ouvir nada do que ela diz. Ela continua a lenga-lenga e agora fala de parentes mais distantes. Eu a interrompo e peço para ele ir logo checar o gerador. Telma olha pra mim desapontada, espero que seja o suficiente para romper nossa amizade platônica.

A menina começa a chorar. A babá a acompanha. Dialética do choro, seria um bom termo para usar nas aulas de pedagogia. O síndico volta e diz que não há nenhum sinal no gerador e que não tem como chamar a assistência técnica. Telma acompanha o choro das outras duas, mas agora decide voltar a seu apartamento. Eu a espero se distanciar para subir também. Roberto vai na frente. Agora tenho que esperar mais um pouco. Meu celular está em 23%. O síndico vai até o casal de idosos e tenta ajudar o velho, que tosse e tem dificuldade de respirar. A mulher de branco se aproxima deles, enquanto a babá se esforça para tirar do carrinho a menina que esperneia. Pego o gato e subo. Ele tenta miar, mas tampo a boca dele. Telma não pode nos ouvir subindo. A escada está livre. Sinto desconforto degrau por degrau, minhas pernas e a lombar doem. Começa uma taquicardia. O gato pesa muito, mas é melhor levá-lo nos braços, antes que aconteça outro incidente.

Chego em casa e o gato mia com desespero. Sirvo a outra metade do sachê. Tomo água e sento no sofá. O coração continua acelerado. Preciso tomar logo meu remédio antes que os outros sintomas cheguem. Pego a caneta injetora no criado-mudo e uma dose de Pamelor no freezer. Injeto no braço e deito para descansar. Seria bom um chá. Tem cápsulas de camomila e de erva cidreira, mas não tem energia. Não, deixa. Só o remédio basta. Pego meu celular e continua sem nenhum sinal. Ele só tem 19% e não posso ficar mexendo, porque não sei quando a energia volta. Meus olhos começam a pesar. Cochilo.

Quando acordo, já anoiteceu. Vou até a janela e lá fora está tudo parado. Os carros não saíram do lugar, mas agora estão vazios. Não há mais ninguém caminhando na rua. Estou com fome. Com a lanterna do celular, vou até a cozinha e percebo que não comi nem metade das calorias do dia. Esqueci de almoçar e não fiz o lanche da tarde. Sinto uma tontura, talvez uma dor de cabeça. Preciso comer o mais rápido possível, mas sem energia não posso esquentar nenhuma refeição. Tomo suco de caju e como uma pitaya. O gato começa a miar de novo. Abro o segundo sachê e coloco metade dele no comedouro. É a penúltima refeição, se a energia não voltar. Agora o celular só tem 15%. Será que já conseguiram abrir a porta do saguão?

A ansiedade passou e já não está tão quente. Eu precisava enviar o relatório ainda hoje. Será que esse apagão foi só aqui perto ou foi geral? Não tenho como saber. Vou deitar de novo. Se o apagão tiver sido só aqui e só eu não entregar o relatório, eles me demitem, por sorte. Estou por um fio na merda daquela empresa. Os atrasos, a baixa produtividade, os atestados. Tem sido mais home do que office, eles dizem e riem. Acho que não foi só aqui. Se fosse, já tinham resolvido. Viro de um lado para o outro, sem achar posição para dormir. Meu celular só tem 12%.

A essa hora devia ter chegado um monte de notificações. Os e-mails com ofertas. As newsletters que nunca assinei. Os lembretes de vencimento das contas mensais. O cupom de desconto pro Misaki só valia até hoje. Será que deu algum match no Tinder? Fico triste por não ter ninguém. Penso no grupo de mensagens da família que me recusei a entrar. Na verdade, eu já não tenho família. Os meus já morreram e os que estão nesse grupo só têm o meu sobrenome, como tantos outros desconhecidos o têm. Fico feliz por não ter ninguém. Agora só tem 9% de bateria e não faço a menor ideia do que está acontecendo. Ainda são dez da noite, mas é melhor ir dormir.

Acordo e são cinco da manhã, já está claro. Vou até a janela e a rua continua vazia. Será que as pessoas continuam lá embaixo? Será que ainda tem alguém no prédio? Preciso comprar a comida do gato. Só tem metade de um sachê e não tenho como pedir. Se a porta do saguão estivesse aberta, eu poderia sair e tentar comprar ração, mas tenho medo de descer e encontrar alguém. Vou ficar aqui mesmo, é mais seguro. O gato começa a miar e dou para ele a última porção. Tomo o meu café e volto para o quarto. Deito e tento ligar a TV. Idiota, não tem energia. Entro no banheiro e a água da ducha está muito fraca, fico embaixo dela até a última gota. Saio do banho e me deito ainda de toalha. O celular só tem 6% e continua sem sinal. A comida do gato acabou. A energia não vai voltar. Começo a tremer. Preciso tomar o Pamelor. Levanto e aplico uma dose, mas o tremor não passa. Aplico outra dose e sinto meu corpo adormecendo lentamente, dos pés até a cabeça. Ainda consigo voltar para a cama. Adormeço.

Acordo e são onze da manhã. O gato está do meu lado e pede comida. Meus lábios estão rachados e sinto gosto de sangue. O suor molhou meus cabelos e a cama. Talvez já esteja 70 graus aqui dentro. Preciso pegar o casaco térmico no sofá. Me levanto com dificuldade. Ele marca 78 graus. Coloco o casaco e ele ameniza o calor. O gato continua miando enquanto me segue. Volto pro quarto e me tranco. Ele começa a arranhar a porta e vai continuar arranhando até se cansar. Não tem mais comida.

É meio-dia. Vou até a janela, a rua continua vazia. Os veículos, parados. Os semáforos, apagados. Os patinetes elétricos estão no chão. Olho para o outro lado da rua e o ipê está entrando em combustão. É a última árvore do bairro. A imagem mais nítida que tenho de quando entrei no apartamento pela primeira vez. A cor protestando contra a aridez e o concreto do entorno. Choro lembrando de todas as fotos que tirei dele, desde que me mudei para cá. Do tempo em que ele se camuflava de folhas verdes, banal. Do tempo em que ele se cansava delas e ficava nu. Do tempo do esplendor, do roxo. Pego o celular, tem 2%. Tiro a foto do ipê e ele descarrega.

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Hortência Siebra
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Autora do À Margem do Impossível (2021), do No sexto dia (2022) e dO inverno à tarde (2023)