Memória

Jorge Borges
Revista Mormaço
Published in
3 min readOct 17, 2020
Fotografia de autoria própria.

São 6 horas de uma manhã fria de fim de inverno quando abro meus olhos me adaptando à meia luz que entra pelas frestas do telhado. Ouço o tilintar de talheres na cozinha e o cheiro de café forte e fumegante, apto a me despertar. Ergo-me renovado após uma boa noite de sono e caminho até o desjejum, encolhendo os dedos ao tocar os pés descalços no chão gelado. “Calça um chinelo, menino!”, exclama minha vó assim que me vê, um pano de prato no ombro e uma mão na cintura, enquanto serve um pouco de leite numa caneca, soprando-o para afastar a nata.

Me sento à mesa e esfrego as mãos nos braços, pois está frio e o dia pra mim ainda não começou. “Cadê meu avô?” Pergunto esfregando uma mão no olho e ensaiando um bocejo preguiçoso. “No curral, tirando leite.” Óbvio, onde mais estaria?

A lenha estala ao fogo espirrando faíscas no ar da cozinha, enquanto corto um pedaço do cuscuz branco recém saído da cuscuzeira. A fatia deita no prato como se tivesse consciência de que me faria muito feliz ao mordê-la. O vapor aquece meus dedos e derrete a manteiga quase que instantaneamente e na primeira garfada meu corpo rejuvenesce como se eu bebesse um elixir divino. “Amo cuscuz branco!” exclamo em gratidão. Minha vó se limita a sorrir, pois ela sabe o que me agrada, mais do que ninguém.

Como sozinho em silêncio, pois ela já se alimentou há muito, e não sobra ninguém pra me fazer companhia.

Ao terminar eu levo o prato vazio para a pia no lado de fora da cozinha e lavo as mãos na água estupidamente fria da torneira. Após escovar os dentes e passar a mão nos cabelos saio ao varandado de piso avermelhado para admirar o Sol nascer por detrás de colinas distantes.

Meu avô aparece saindo do curral, trajando um chapéu de palha na cabeça e uma camisa de botão suja de lama. “Já comeu?” limita-se a perguntar pra mim quando chega ao terreiro que circunda a casa. “Já.” respondo, seguindo a mesma objetividade. Ele passa por mim com seus passos largos, as botas brancas meladas de esterco fazendo barulho ao tocar a terra, os braços pesados ao lado do corpo.

Sigo-o e ele vai até o fundo da casa, onde enche sua bacia branca esmaltada com água que pegou no tanque. Lava as mãos, em seguida o rosto, em seguida o pescoço. Eu penso que a água deve estar gelada, mas ele pouco se importa, pois seu dia começou antes mesmo de haver luz e o frio já havia sido afastado.

Ele se enxuga numa toalha velha e só depois me nota observando-o. Seus olhos cinzentos e penetrantes encontram os meus e vejo brotar um sorriso em seus lábios finos, como se ele soubesse que aquela memória jamais me fugiria através do tempo.

Ele irrompe cozinha adentro sem falar nada e me deixa sozinho, respeitando os minutos que eu preciso pra guardar aquela cena num lugar especial. Eu fico lá, de braços cruzados e olhos fixos na bacia esmaltada, agora quase vazia, enquanto o Sol matinal trabalha pra trazer de volta o calor que a noite levou.

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