Mudança

nilo nobre
Revista Mormaço
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5 min readMay 2, 2024
Adaptado de uma imagem gratuita obtida em br.freepik.com

Seu Antônio observava admirado aquelas nuvens carregadas que escureciam o horizonte. Crescera no sertão e um indício de chuva como aquele enchia seu coração de esperança. Quando pensava sobre o assunto, achava estranho que as representações da chuva na televisão fossem sempre tristes e associadas a velórios. Esses gringos devem ser doidos, pensava.

Era em outro tipo de cenas que ele encontrava um eco daquele sentimento. Quando filmes abordavam a transição do inverno para a primavera. O desabrochar das novas plantas e flores. A expressão de força da vida que acordava mais uma vez. No norte, era após o gelo do inverno. No seu sertãozinho, era do verão para o outono que a caatinga recebia as primeiras chuvas, abandonando aquele aspecto de floresta morta, e cada árvore voltava a vestir suas folhagens verdes e exuberantes. Como aquela música de Elis Regina que ouvia na rádio: “são as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no meu coração”. Era isso que fazia seu coração bater mais forte, o ar parecia mais fresco, e a esperança o inundava como as sangrias dos açudes faziam correr os riachos.

O vento gelado varreu seu rosto e seu Antônio sentiu seu coração acelerar de emoção. A chuva estava voltando.

Dona Neuda o chamou às pressas, estava tão concentrado na esperança que sentia que não lembrava o quanto a chuva era diferente na cidade.

Havia pouco tempo que seu Antônio se mudara para a capital com a família. Desde sempre viveram em seu lote de terra herdado do pai, até que chegaram uns homens da cidade dizendo que queriam arrendar o terreno para instalar uma usina elétrica. Energia limpa, o senhor estará fazendo um bem para o mundo inteiro, eles diziam.

De início, seu Antônio ficou relutante em aceitar o acordo. Não conhecia outra vida além daquela e sua terra era tudo que tinha e precisava. Ficou ainda mais resistente quando descobriu que a empresa usaria todo seu terreno. Não seria possível plantar, nem criar bichos e ele teria que sair da casa, a qual seria convertida em escritório da empresa.

Quis conversar com os vizinhos, mas a empresa também estava negociando com eles. Alguns foram muito mais rápidos em aceitar o acordo. Em pouco tempo, quase todos que haviam crescido com ele naquelas terras haviam embarcado no empreendimento, para viver com a renda do aluguel do terreno.

Alguns meses de negociação depois e seu Antônio acabou cedendo. Não conseguia plantar e criar tudo só no seu terreno e nem podia levar o gado para pastar na vazante do rio, pois as terras agora tinham uma cerca alta com homens armados na portaria.

O dia em que o caminhão levou suas coisas para a cidade estava com tempo de chuva. Foi a primeira vez em que seu Antônio se sentiu triste em um dia tão bonito. Ainda assim, a promessa de renovação que a chuva trazia serviu para ele como uma promessa de que a cidade não seria tão ruim. Ele estava apenas iniciando um novo ciclo, assim como as árvores da caatinga.

— Vem logo, homem! — O grito de dona Neuda o trouxe de volta. Lembrou que a expectativa de uma boa vida na cidade foi frustrada no primeiro período chuvoso como aquele. Entrou em casa e viu sua esposa segurando um dos lados da televisão. — Bora! Me ajuda a colocar em cima da geladeira.

Então a chuva começou a castigar lá fora. Não como aquelas neblinas para esfriar o tempo, nem mesmo como aquelas que faziam correr água nas encostas. Ali, no litoral, era uma verdadeira tempestade. O vento forte, os raios, a torrente infindável que fazia subir os rios como o que corria a poucos metros da casa, cujo canal de concreto não passava de uma tola e ineficaz tentativa humana de conter uma força da natureza, tudo aquilo significava apenas uma coisa: desastre.

O rio começou a subir. Os sistemas de esgoto quase sempre entupidos nunca eram suficientes para drenar o volume de água necessário para evitar a tragédia e logo os vizinhos de seu Antônio começaram a passar na rua com alguns móveis na cabeça, enrolados em lona para não tomarem a água que vinha de cima e carregados para não serem atingidos pela água que vinha de baixo.

O dinheiro da empresa, que parecia um bom negócio no sertão, mal dava para alugar um barraco na cidade. Seu Antônio, o último a aceitar o acordo, ainda conseguiu um valor um pouco mais alto, mas seus vizinhos que saíram primeiro foram morar em locais ainda mais próximos da beira do rio.

Dona Neuda já havia colocado as roupas em cima do guarda-roupas, enroladas em trouxas improvisadas feitas com os lençóis e empilhadas sobre o gaveteiro do móvel, que já estava com as tábuas inferiores inchadas de água. O colchão foi colocado sobre duas redes e servia de mezanino para colocar pequenos utensílios. Seu Antônio rezava para que naquele ano a água não subisse mais que um metro, ou ainda atingiria tudo que estava sobre o colchão suspenso.

Após tudo que pôde ser feito em casa para evitar as perdas, ele foi lá fora para ver o temporal.

Na rua, meninos mergulhavam enquanto suas mães gritavam para que tomassem cuidado com a correnteza. Vizinhos das áreas mais baixas tentavam como podiam segurar utensílios que estavam sendo levados. Outros estavam sentados em seus telhados enquanto assistiam atônitos a perda total de seus móveis.

Impossibilitado de voltar para sua terra, sem dinheiro suficiente para comprar outro terreno e naquela correria de preocupação, seu Antônio começou a ver a chuva com outros olhos.

Agora, quando chovia, seu Antônio sempre ficava dividido entre sentimentos conflitantes. Não abandonara por completo o sentimento de esperança que se anunciava com o início da estação chuvosa, estava gravado em seu ser desde sempre, porém, sabia também que a chuva significava preocupação com sua saúde, com a integridade da casa e dos móveis. Não podia ser de outra forma, pois a chuva que antes inundava seu coração de esperança, agora inundava sua casa e levava seus pertences.

Ali, no meio do temporal e com a água subindo pelas canelas, seu Antônio chorou. Lágrimas que foram carregadas tão rápido quando os móveis de seus vizinhos menos afortunados e tão invisíveis quanto aquela catástrofe anual parecia ser para o poder público e para o resto da sociedade.

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nilo nobre
Revista Mormaço

Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.