Nauseado

Matheus Peleteiro
Revista Mormaço
Published in
6 min readMay 13, 2021
Photo por Aarón Blanco Tejedor em Unsplash

Certa manhã, após deixar de sonhar acordado e despertar de sonhos progressistas, Jean Kafta se deparou com um universo terrivelmente habitual, no entanto, insólito, graças a um minucioso olhar repentino que o acometera de forma avassaladora.

Ao levantar-se da cama e caminhar até o banheiro, sentiu como se só então tivesse adormecido. Olhando-se no espelho, teve a impressão de que era o sujeito por trás da lâmina de vidro que o olhava, e não o contrário. E, após sentar-se no vaso sanitário e passar o feed das redes sociais, sorriu diante da possibilidade de estar participando de algum Show de Truman humorístico. Porém, no minuto seguinte, um inquietante arrepio percorreu seu corpo.

Nas notícias e publicações jornalísticas assinadas por mecânicos e engenheiros, bombeiros punham fogo em bibliotecas e terrenos não pertencentes a proprietários ricos; advogados faziam cálculos monetários e planejamentos financeiros para contadores e bancários, e jogadores de futebol escreviam livros e artigos acadêmicos, enquanto médicos contribuíam com pílulas de enfermidades e donas de casa e arquitetos prescreviam medicamentos com a convicção de coachs a gritar palavras lidas em livros de autoajuda.

Depois de caminhar até a cozinha a fim de tomar o café da manhã na companhia dos seus pais e da sua irmã, cuspiu o suco de caju ao percebê-lo salgado. Em seguida, comeu um pedaço de peito de frango açucarado e gargalhou.

“Mãe, você confundiu o sal e o açúcar”, disse.

“Como assim?”, estranhou ela.

“Você colocou sal no suco e açúcar na carne”, explicou, gargalhando outra vez.

Ao tempo em que todos se olhavam de forma complacente, seu pai agitou a cabeça em sinal de reprovação.

“Pronto. Agora o nosso filho foi doutrinado por cientistas”, bradou.

“Filho, os mecânicos, os engenheiros, os arquitetos e as donas de casa já nos disseram dezenas de vezes: o ideal é colocar sal no suco e açúcar na carne. Não percebe como fica melhor e mais gostoso? Coma mais um pedaço, beba mais um gole”, ponderou sua mãe.

“O que é isso? É primeiro de abril?”, questionou Jean, sorrindo.

Ao perceber que nenhum dos presentes parecia participar de alguma brincadeira, levantou-se e saiu.

“Hoje eu tô sem paciência”, disse, antes de fechar a porta.

Caminhando pela rua a fim de espairecer os pensamentos, estranhou ao notar uma vasta aglomeração de operários que reivindicavam a permissão do uso de quaisquer agrotóxicos em alimentos, sob o argumento de que somente assim teriam a garantia de que não seriam vitimados pelo câncer. Em suas mãos, exibiam cartazes a ignorar a etimologia das palavras com expressões como “Agrotóxicos contra o câncer”, ou “Mais agrotóxicos e menos toxinas”.

De pronto, Jean tentou questioná-los. Buscou encontrar um sentido, esforçou-se para provar-lhes a falta de sentido daquilo que diziam não fazia o menor sentido e, por fim, utilizou-se de argumentos razoáveis que podiam ser depreendidos de leituras sobre o tema. No entanto, embora fizesse questionamentos claros e compreensíveis, qualquer sujeito que assistisse à cena sem escutar o que era dito, poderia jurar que as perguntas que fazia para decifrar o que se passava na cabeça daqueles operários eram dotadas de algum defeito cognitivo, afinal, ninguém as entendia. Jean tinha consciência do que dizia, mas não conseguia supor a relação entre o que acabara de dizer e o que lhe era respondido; tampouco era capaz de imaginar o que escutavam das suas palavras.

A seguir, deparou-se com uma multidão que pleiteava a retirada da matéria História da grade curricular dos colégios, alegando que todos foram enganados a respeito da existência dos dinossauros, afirmando que os fósseis encontrados eram de galinhas e rinocerontes, com base em afirmações de um cirurgião buco-maxilo-facial. Depois, esbarrou-se em um grupo que pressionava o governo a assumir que o petróleo era, na realidade, oriundo da Coca-Cola, na esperança de revelar uma conspiração internacional, e viu a sua paciência se esgotar.

Irresignado, Jean começou a distribuir desaforos e a dizer que estavam todos alucinados, ao mesmo tempo em que riam da sua engraçada e inocente razão. Mesmo não sabendo se aquelas pessoas eram vulneráveis ou estúpidas, tudo aquilo o afetou.

“Alguém me drogou, não é possível. Deve ser uma bad trip ou um sonho ruim”, pensou consigo próprio. Mas, não. Não era um sonho. A consciência que tinha de cada palavra absurda escutada era enfática o bastante para fazê-lo refletir por minutos, sem esquecer o que lhe fora dito. Considerou uma enfermidade, porém, não sabia se era sua ou do seu país a esquizofrenia que supunha.

O mormaço do chuvisco sem vento o fazia sentir-se impaciente. Jean então desviou a vista para a área onde ficavam os estabelecimentos comerciais e avistou uma loja esportiva com ar-condicionado. Ao adentrá-la, iniciou simples diálogos e logo se viu tendo que esclarecer a história com evidências há décadas comprovadas, ao mesmo tempo em que todos davam a entender que ele estava fora de si por dizer o que lhe era óbvio.

Sentiu tonturas, taquicardia, náuseas, vontade de morrer, enjoo, dores de cabeça, crises de ansiedade. “Seria o caso de tomar remédios, cair na cama e dormir até esquecer todo este delírio?” — considerou. Mas era impossível dormir. Estava atônito, e jamais existira medicamento eficaz contra a realidade.

Voltou para casa, ligou para a universidade onde lecionava e comunicou sobre o seu desconforto, alegando que providenciaria um atestado e entregaria assim que fosse apresentada uma melhora.

Entretanto, uma voz do outro lado respondeu-lhe que esta era uma razão pela qual deveria justamente ir trabalhar, pois não era ideal que os seus profissionais se sentissem confortáveis durante o trabalho, de modo que Jean ficou estarrecido. Tentando não expor o transtorno que o acometia, evitou questionar o funcionário do RH:

“Desculpa, preciso mesmo desligar. Em breve mando notícias”.

Decorridos cinco dias sem progresso no seu estado de saúde, estupefato com o que era dito nos canais da televisão, na internet e entre as conversas ocorridas no seu lar, foi para a clínica de TI que atendia durante vinte e quatro horas por dia, e submeteu-se ao analista de informática que estava de plantão que lamentou ao fazer a triagem e constatar:

“Este sujeito padece de um claro delírio juvenil. Não é uma patologia, mas um problema de rejeição à realidade!”

Em um primeiro momento, a expressão de frustração estampada na face dos seus pais o fez sentir tremedeiras de remorsos por decepcionar os seus genitores e provedores de tal maneira. Porém, ao se dar conta do quão ridículo era aquele diagnóstico — ou aquele que lhe fornecera o diagnóstico — , Jean gargalhou e convenceu-se, não sem certo pesar, de que, na realidade, era o único não enfermo no hospício a céu aberto que o vitimara.

Em silêncio, Jean caminhou pelos corredores da clínica e, como se aceitasse estar num zombeteiro e hediondo sonho, deixou-se levar pela demência coletiva. Sua visão foi ficando gradativamente embaçada, a esperança que carregava em seu âmago assumiu o status de droga alucinógena que Rubem Alves advertira em um dos seus livros de aforismos. Os seus enjoos foram dissociados da taquicardia, da vontade de morrer e das dores de cabeça, e então ele se viu entorpecido pelos dissabores do desgosto.

A sua dor se dava por saber que não estava louco. Que os outros é que estavam ensandecidos, que o mundo inteiro estava desvairado, de cabeça para baixo, e ele não. Na psiquiatria, comumente é dito que aqueles que convivem com sujeitos acometidos por transtornos psiquiátricos também precisam de ajuda, também adoecem. Mas Jean não. Jean Kafta, que durante a vida inteira acreditara que a razão absoluta não existia, pela primeira vez tinha convicção de que estava certo. Jean Kafta não se deixaria adoecer. Jean Kafta vomitaria a sensatez e seguiria em frente, sem ser pego. Jean Kafta não receberia receitas médicas de donas de casa e nem se informaria com engenheiros. Jean Kafta suportava uma indigestão que o impedia de falar, uma náusea que quase o impedia de viver, mas ele ainda estava de pé.

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