nome próprio

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
2 min readFeb 1, 2023
arte de Cristina Martinez

— seu nome, minha querida

desvio os olhos da tela do computador e encaro o professor à minha frente.

O olhar é simples e corriqueiro, assim como a pergunta. Ele me encara com a tranquilidade banal de quem fez um questionamento acessível. A camisa cinza combina com o cabelo grisalho que também combina com uma manhã amarela de sexta-feira gasta dentro dessa sala de aula. A máscara preta esconde metade de um rosto que eu talvez esquecesse, não fosse a frase

“seu nome, minha querida”

o meu nome? O meu?

Eis que me empresto olhos, vejo e sinto o encargo de caber no meu nome. Mais que simplesmente caber: ele deve se moldar a todas as curvas, quinas e dobras do meu corpo porque a ideia é que os nomes próprios são feitos de um tecido maleável que acompanha nossas mudanças desde o nascimento (ou antes disso). Se engordo ou emagreço ou cresço ou envergo: foda-se. Foda-se se não está confortável, dê seus pulos, redistribua as calorias, torneie seus músculos, raspe os excessos, preencha as folgas.

Posso me satisfazer com uma falácia de controle ao escolher um pedaço ou qualquer apelido, mas nada mais são do que variações da escolha que me nomeia (escolha que não me coube). Seria eu capaz de me auto nomear? Os outros nomes soam pomposos demais, alguns chegam a ser antiquados. Desacostumada com a ordem de letras que me são estranhas, agarro meus pedaços, designação que não veio da minha vontade mas é a primeira coisa a me definir como Gente. Meu desafio em vida é me adequar ao meu próprio nome, composto de arte e corpo.

Se o que os outros conhecem de mim morre, o nome dá a sustentação: as linhas retas são pilares, as horizontais são vigas e as curvas servem de cimento.

se falto com a presença, ele performa
se ele me falta, questiono: quem sou eu para além do meu nome?
ele me limita? me excedo
esperneio, ensaio outros
ensaio um não
desobedeço, ouço o escândalo

— o seu nome, minha querida

digo. retalho. recorto. Nomeio-me. A noção se forma, dobro a bainha do tecido e o gosto daquela fração preenche a minha boca, sombra de batismo. alvoroço desfeito.

Passo todas as manhãs de sexta-feira ouvindo o professor me usar como referência em suas explicações, me arrependendo profundamente do recorte que fiz. Ele sempre precisa repetir porque é só na segunda vez que percebo que é a mim que se refere em seus exemplos.

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