NOVOS E HEDIONDOS CRITÉRIOS

Beatriz Trimer
Revista Mormaço
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4 min readJul 25, 2022

RESPOSTA À CAPA DO SUPLEMENTO R.

O presente texto foi baseado em fatos reais. Para isso, todos os nomes foram suprimidos para preservar a identidade dos participantes. Qualquer relação com a realidade é mera coincidência

Foto de Beatriz Trimer

« Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
« D’oú sortaient de noirs bataill ons
« De larves, qui coulaient comme un épais liquide
« Le long de ces vivants haillons. »
Charles Baudelaire

18 de julho de 1992

Ouso-me adentrar no espaço que não me condiz como profissional: a crítica. Veja bem, como escritora, pus-me no lugar de que as interpretações dos outros é o que dará a vida a minha obra. Ela, por si só, tem um sentido, como bem o pensei ao redigi-la. Mas, sobretudo, parte do leitor, e da sua ligação com o que por mim foi proposto, que prefigura o sentido que ele desenhará do meu livro. Agora, perante a edição do Suplemento R., que percebi minha interpretação esvaziada do que seria meu leitor. Eu desconsiderava, portanto, a crítica. Diante disso, entendia por leitor aquele sujeito que lê-me sem intenção. Ele é despretensioso, calmo ou voraz, que desfaz minhas páginas sem qualquer compromisso de resposta. Ele lê, deposita meu livro em sua estante, comenta com alguéns sua opinião, alguns ainda se atrevem a me enviarem uma mensagem, e depois parte para outra leitura de algum colega. A crítica, por sua vez, parece que tem como objetivo esmiuçar aquilo que está diante dela. Sinto que minha obra é aberta, despida sem qualquer ato de carinho ou cuidado, depois posta a exposição como em Une charogne. Li a crítica nela como leio este poema. Senti-me tal como Baudelaire e sua amada: em uma manhã quente a caminho da padaria vi minha obra escancarada, fétida, carcomida por moscas e vermes bem na capa daquela revista. Senti-me nauseada.

É necessário, primeiro, ressaltar o ultraje da afirmação que meu romance seja uma autobiografia. Pergunto-me de onde isso surgiu. Já é sabido que a ficção, que parte de pessoas reais, não atrai a todos. Porém classificá-la como autobiografia é um tanto quanto equivocada. Um romance é um local em que os personagens são vivos e, sobretudo, onde o autor tem total liberdade para criar. Pouco importa de onde surgiram os personagens. Se em entrevista eu digo que eles existem e são meus amigos, parentes, conhecidos ou alunos, não significa que as influências dos acontecimentos sejam verídicas. Esta afirmação que coloca, a minha obra e eu em uma situação muito delicada. Pois, veja bem, os personagens que veem até os autores. Vejo-os pairando em um universo de existência que, diante da minha vista e da minha percepção de mundo, ganham formas em acontecimentos fictícios. É por pura coincidência que eles nasçam em pessoas reais.

São os fatos narrados que traçam o universo de ficção de minha obra. Ela está muito além dos meus personagens. A literatura, como escape, dispõe de seus elementos para produção de uma história que, além de entreter e divertir o leitor, seja, também, uma necessidade de entrever seus sentimentos e seus conflitos pessoais. Diante da perspectiva de que nós somos seres políticos, creio que as criações de qualquer escritor partam daquilo que está em seu dia a dia. Da mesma forma que os personagens partem de seres já conhecidos, os acontecimentos fluem sempre perante a tal lógica. As ações do romance apenas me vieram em um momento de epifania.

Ao dizer que minha recente obra é uma autobiografia, muito além de ser um termo erroneamente empregado, esvazia minha obra em um cadáver aberto e fétido. Ao ler aquelas repulsivas palavras não deixei de notar o pouco conhecimento e apuração poética do tal crítico. Pergunto-me quais os novos e hediondos critérios destes sujeitos para reestruturar o cânone e gêneros literários. O conjunto de minha obra parte de um universo muito além deste pós-moderno que insistem em ponderar nas críticas aos meus textos. Todas as manifestações artísticas, que a mim são dispostas, estão muito além destes critérios desafortunados que tanto ganham espaço nos dias de hoje. O fazer-se literário está morrendo, pouco a pouco, nos dias de hoje. Pelo meu infeliz desprazer de ter sido lida através destes inocupados parâmetros que deixo aqui meus pêsames a literatura de qualidade.

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Beatriz Trimer
Revista Mormaço

O orvalho se tece nas quintas-feiras. Na sexta faço croche. Viajo em ideias na segunda. A adubação nas quartas. Escrevo nos intervalos