numa casa, dando voltas, uma onça poesia

danna dantas
Revista Mormaço
Published in
3 min readApr 12, 2022
Ilustração de Kenzo Hamazaki

era uma vez
uma mulher que acreditava que o sofrimento era a sua serventia.
dessa história eu inventei uma grande lição: nem tudo é tão definitivo.
só não tem jeito pra morte, é indiscutível
mas pro resto…

um dia essa mulher escreveu versos quase rimados
sobre a morte de uma onça muito amada
pra que a perda de um corpo que não pôde envelhecer não fosse tão permanente mas
indecisa
dando voltas, poesia
se tornasse uma canção
sobre a alegria das coisas
indomesticáveis

mostrando dentes
chorou a despedida com toda força
e ninguém compreendeu seu pranto de animal
todos preferiram que as memórias apodrecessem longe da vista
silenciosas
cada vez mais silenciosas
enterradas no quintal

o sofrimento em silêncio sugou o cálcio dos seus ossos
só não esmigalhou-se porque tinha um baú de livros e três meninas pra cuidar
e além disso, o terreno
e depois disso, uma casa
que construída sobre o cadáver de bichos
sempre achou difícil se desvencilhar da decomposição

não tem nada a ver mas
na torneira da pia do banheiro está escrita a palavra MARTE
toda vez que escovo os dentes eu penso no espaço
e em onde ele escondeu mais água
já que aqui, desde essa época, estamos constantemente esgotadas.

essa torneira é o seguinte: pode usar normal, mas tá quebrada.

é só mais um macete entre os vários, pertencentes à uma casa sem muito dinheiro pra reparos. pode usar normal.
se ainda serve, é isso que fazemos. insistimos.

os poemas sobre a onça esfarelaram-se dentro do baú
antes de mim as três meninas cresceram e disseram
que a positividade não adianta muito numa queda pois
depois que o pior passa, você passa
por alturas que não te machucariam se você não viesse de tão longe
você pensa que finalmente reconhece o espaço em volta
e mesmo com dentes e garras e força
você acaba morta
foi a lição que inventaram para si à respeito de arriscar um salto.

mais anos passaram, eu
porosa
pensei meu deus como estou apodrecida
e estou mesmo
há ferrugem em meus versos
como em tudo que espera tanto tempo ao relento
você sente o cheiro?
o gosto de sangue pintado?
isso é o que torna minhas palavras ariscas.

penso muito nas meninas

por elas, renego a morte
por causa delas, insisto
mas ao contrário delas, acho a persistência pavorosa
permeável
o meu maior problema é que eu não acho feio desistir

aprendi isso imaginando uma história onde uma onça me dava um banho interminável
e com voz de água jorrando rígida cantava que tudo tem um jeito
não precisa ser assim pra sempre
um dia a gente foge e para de morrer

para além do sofrimento, a casa foi construída pra que versos bichos livres também viessem antes de mim
e eu pudesse contá-los e cantá-los em quase rimas de mulher

não sei bem como o poema termina
mas é pra isso que devo servir

viver solta para sempre
e fim.

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danna dantas
Revista Mormaço

nascer no interior me levou a escrever sobre os lados de dentro