Nunca vi o sol nascer

Luizza Milczanowski
Revista Mormaço
Published in
4 min readJul 1, 2024
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São quatro horas da manhã. Não consigo dormir diante da noite silenciosa. O silêncio é feito dos sussurros que são os meus pensamentos. Meus olhos vidrados na madrugada. São horas que se perdem no universo, mas não importa. Quando eu morrer, não fará diferença o que fiz ou o que deixei de fazer. A manhã chega daqui a três horas e meia, mais ou menos. Nunca vi o amanhecer, porque no meu quarto não tem janela e eu teria de me expor ao frio da manhã. O frio da manhã é pior do que o frio da noite. A angústia não me permite dormir e não me permite escrever. A falta de janela não me permite fumar. O dia chega tarde demais e a noite vem cedo demais. O quarto e o smartphone vazios, porque os amantes e a internet dormem, neste fuso e no de lá. Talvez seja a sorte dos insones ter amigos do outro lado do mundo e falar numa outra língua sobre banalidades para não ter de dizer angústias sobre a juventude ou a velhice em sua própria língua. Estou nesse limbo em que é tarde demais para uma e cedo demais para outra. Estou nesse limbo confuso de amores incompletos que não se entregam para dormir juntos numa noite qualquer. É quando se percebe que as pessoas são apenas complicadas. Não que antes não existisse essa percepção: a diferença é que antes tínhamos a energia e a espontaneidade de gritar, de tentar, de sofrer. Agora, o tempo amargou nossos ombros e não temos mais energia para brigar pelo outro, para estar ou tentar compreender o outro. Sabemos: é em vão, as pessoas são simplesmente complicadas e não temos tempo ou energia (repito) para essas complicações.

São 4:34h. Eu demorei dez minutos para pensar em duas linhas. Demorei dez minutos para decidir afinal o que dizer. Eu sei, angústia, o que eu gostaria de despejar. Mas, o papel não é nenhum conforto para mim. O papel completa as lacunas da minha memória e as transformam em imaginação. A literatura é formada desses incompletos que encontro pela vida e que vou preenchendo com minhas palavras que dizem qualquer coisa. A verdade é que minha garganta dói e, pelo adiantar da hora, já desisti de dormir. Dormir me assusta. Talvez, se eu deixasse a madrugada me engolir e a exaustão me abraçar, o sono viria sem que eu percebesse. O que existe nesse sonho que me enche de pavor? Amanhã (hoje, daqui a algumas horas) preciso ir ao posto de saúde dizer em outra língua — não a minha, língua portuguesa-brasileira — que preciso ver o médico. Ir a uma consulta, ter minhas cavidades examinadas para conseguir uma receita. Odeio a ideia de ir ao médico. Tenho medo, não dos procedimentos, mas da coisa humana que os conduz. Tenho medo da fria boca cheia de dentes brancos que me diz que eu não posso conduzir minha própria vida ou então que os problemas que relato na realidade não existem, porque a boca cheia de dentes brancos mal ouve enquanto preenche em seu computador uma receita-de-qualquer-coisa. A boca cheia de dentes brancos me diz com uma boca cheia de dentes brancos que não mereço respeito, que sou qualquer coisa menos algo que deve ser olhado com humanidade. Porque, afinal, trata-se apenas de uma louca. Mais uma e mais uma. E elas nem sentem nem compreendem nada.

A boca cheia de dentes brancos acha que pode falar sobre compostos x e y, mas não tolera que eu diga a ela que talvez tenha receio de tomar x ou y por motivo tal e qual. Eu nem consigo terminar quando tento explicar que tenho medo, porque a boca cheia de dentes diz que já tentei me matar e que não devo ter medo, porque, afinal, eu não tive medo de me matar ou de estar abaixo do peso ou de — e aqui ela pega minha ficha médica e me lista os motivos pelos quais não estou autorizada a questioná-la.

Mas, dessa vez, só preciso de uma receita para dor de garganta. E, apesar disso, o corpo da boca cheia de dentes brancos veste o mesmo uniforme. Todos eles, rostinhos brancos e sorridentes nas mesmas roupas brancas e intactas. Eu, que tenho os dentes amarelos e estou abaixo do peso e tenho veias saltadas, não posso questioná-los. Tenho de ficar quieta. Entro e saio da mesma forma. Não devo perguntar o motivo de tomar isso ou aquilo, mas apenas tomar isso e aquilo. Não adianta que explique sobre sentir isso e aquilo — meu corpo fala por mim, mas não estou autorizada a falar pelo meu corpo e através do meu corpo. Não! Devo calar e concordar e tomar pílulas sem compreender o que essas pílulas são. Porque meus dentes são escuros demais para entender. Porque é mais fácil que eu só engula e consinta — mas de lábios cerrados, porque meus dentes não estão em estado apropriado para sorrir em um ambiente tão limpo e tão imaculado. A boca cheia de dentes brancos pode tecer quaisquer comentários e fazer quaisquer piadas ou dar qualquer opinião sobre mim. Eu apenas posso sorrir com meus lábios cerrados de dentes amarelos demais. Nem preciso dizer que dói — apenas mostro as feridas. Podem cutucá-las, examiná-las, talvez estudá-las quando eu morrer. Posso contar sobre meus planos de ver o nascer do sol às oito da manhã. É por isso, explico, que meus olhos estão tão cansados: eu desisti da insônia e resolvi esperar o sol nascer. Nunca vi o sol nascer nessa cidade tão fria, porque meu quarto não tem janela. Mas consigo imaginar as cores do sol despontando no céu em minha imaginação repleta de sonhos.

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