O amor é revolucionário.

Izabelly Lopes
Revista Mormaço
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12 min readFeb 7, 2022

Foi no batucar dos tambores revolucionários e sentindo o coração pulsar nos ouvidos que avistei Rana pela primeira vez em uma manifestação da UNE na Avenida Paulista no verão de 1980. E como o significado do nome dela já diz, a partir desse dia não consegui mais tirar os olhos dela. Ela cursava História na USP e eu estava trilhando meu caminho na Psicologia na PUC. Mundos totalmente opostos, mas que naquela sexta-feira se encontraram e, por um milagre do destino — ou como vocês queiram chamar, permanecem juntos até hoje.

Em 1990, 10 anos depois que nos conhecemos, um casamento no meio do caminho e várias mudanças, decidimos que iríamos finalmente começar a aumentar nossa família. Que já era enorme, tanto do lado dela, quanto do meu. Quando fomos morar juntas, Rana trouxe 3 gatos, um cachorro e um porquinho da índia. Parecia que nossa casa só abrigava nossos animais, até hoje é assim. Os humanos ficam exprimidos, mas sobra espaço pros bichos. E depois de tantos anos e vários bichos na nossa casa, minha esposa chegou do trabalho uma noite e disse: “Vamos ser mães!”, “Mas já somos, não?”, “Mães de seres humanos, Guilhermina”. E depois disso embarcamos na nossa aventura mais louca, se assim posso dizer. Rana foi incrivelmente a mulher mais resiliente e forte no processo da gravidez. Não reclamava dos hormônios que precisava tomar, das consultas longas com médicos, das visitas à parteira. “As crianças estão em posição certa. Estão prontas. Todas estamos”, disse Marlene na nossa última consulta com ela. Um anjo que nos acompanhou durante os 9 meses que Rana carregou as meninas.

Sim. Gêmeas.

Quando soubemos que iriamos ter gêmeas, o que já estava mudado se transformou pra algo que até hoje não sei bem explicar. Nossas famílias ficaram eufóricas e todo mundo quis acampar na sala da nossa casa nos últimos meses da gestação de Rana. “Vocês já viram como é morar com uma psicóloga? Guilhermina e as coisas dela já ocupam 99% do espaço da nossa casa, não quero mais bagunça por aqui!”. A culpa dos bichos agora era minha. Oras.

E foi nesse ritmo, sendo extraordinária e se entregando à dança da maternidade, que vi Rana se tornar a mãe mais dedicada que meus olhos já viram e meus ouvidos ouviram falar. Foi impecável do começo dessa jornada até o dia 30 de outubro de 1991, quando deu à luz a Caetana e Clarice. A licença poética de nomear nossas filhas foi mérito meu, já que foi a única coisa que Rana me deixou fazer sozinha. É engraçado pensar agora no nascimento das meninas, fazia muitos anos que eu não lembrava o exato momento em que perdi minha insônia e comecei a dormir em qualquer lugar da casa quando estava presente. Foram meses intensos. Lembro que Caetana tinha cólicas horríveis durante a madrugada, o que, claro, atrapalhava o sono de Clarice, já que tínhamos resolvido que elas ocupariam o mesmo quarto até completarem 2 anos de idade. Coisas de gêmeos. Clarice, coitada, precisou ser colocada em outro quarto porque a irmã não a deixava dormir nos 30 primeiros dias de vida. Caetana sempre foi uma selvagem, igual a mãe.

15 anos depois do nascimento das meninas, Rana decidiu que queria se mudar pra Recife. “Faz suas malas, embala seus livros e avisa aos seus pacientes que você tá indo embora”. Foi assim que ela me comunicou que queria se mudar de São Paulo. Ela era assim, essa força inconstante da natureza. E assim fizemos. Embalamos tudo o que tínhamos. Pegamos as gêmeas, os bichos e chegamos em Recife. Sempre me imaginei morando em uma praia quente do Nordeste, não vou negar, mas Rana escolheu uma casa simpática com um quintal enorme no bairro de Aldeia pra gente se abrigar nos anos seguintes. Ela partiu pra dar aulas de História na Universidade local, e eu fui atrás de fazer a única coisa que sei — acolher e ouvir gente. As meninas foram tomando seus próprios rumos com o passar do tempo. Caetana quase seguiu os passos da mãe, mas foi cursar museologia. Clarice, que não negou o peso de seu nome, seguiu o caminho das letras. É engraçado que minhas filhas aos 17 anos já estavam decididas a estudar o que seria a carreira delas nessa vida. Ao que parece não herdaram a indecisão da mãe. No caso eu.

Hoje é um dia que faz frio em Recife. Normal pra essa época do ano, mas estranho pra mim, que nunca me acostumo com esse clima indeciso. A coisa que mais gosto de fazer nas minhas tardes livres é sentar na varanda, com uma xicara de chá e ler o máximo de palavras que eu conseguir, não importa se é um livro, um jornal, uma revista ou a tese de mestrado de Clarice, minha filha, sobre Clarice Lispector. Ela foi a gêmea que veio primeiro ao mundo, então se considera a “mais velha”, sendo assim, foi nomeada primeiramente com o nome de minha escritora favorita. Quando resolveu seguir os passos da literatura, eu cochichei no ouvido dela: “filha, isso não é só pra me agradar, né?”, “mamãe, seu ego é tão grande que poderia preencher toda a sala da nossa casa”, foi a resposta dela, assim que descobrimos que ela tinha passado no mestrado mais disputado do Brasil, pra falar sobe a vida, a obra e os afetos de Clarice Lispector.

Eu vou fingir que eu não tive uma grande influência nas decisões acadêmicas da minha filha, sendo eu também formada em letras e suspeita para falar sobre a escrita clariciana. Com Caetana não foi muito diferente, apesar de ser. Rana não entendia porque a filha queria estudar museus, arte, cultura. E em uma noite enquanto jantávamos questionou Caetana sobre seu curso, que só disse: “eu não questiono a senhora por ter passado metade da sua vida enfiada em uma sala de aula falando sobre coisas velhas, por que a senhora se incomoda que eu estude exatamente sobre o que a senhora fala?”

Desde esse dia Rana nunca mais deu um pio sobe Caetana e seus museus.

E tem isso. Rana, apesar de ser uma mãe dedicada, sempre estava envolvida demais com seu trabalho, e não que isso seja uma coisa ruim, porque eu estou no mesmo caminho. O problema era que minha esposa achava que tinha toda disponibilidade do mundo para nossas filhas, mas ela se esqueceu de um detalhe muito importante — o tempo. Ele passou, as meninas cresceram e, por mais que fôssemos extremamente dedicadas, tínhamos carreias pra cuidar e mais um milhão de coisas que envolvem ser adulta, mãe e responsável. E assim foi.

Estamos envelhecendo por aqui. Aldeia foi uma ótima escolha. E eu ainda não tive tempo de agradecer a Rana por isso. E nem sei se um dia conseguirei. Sabem aquela fase do relacionamento de um casal em que tudo está estranho demais e qualquer palavra dita de uma forma diferente pode desencadear a terceira guerra mundial? Eu e Rana estamos nessa fase. Agora já na casa dos 50 anos, com nossas carreiras consolidadas e nossas filhas adultas e responsáveis por si mesmas, parece que algo se perdeu.

— Mamãe, tá tudo bem entre vocês duas? — Clarice me questionou me tirando dos meus pensamentos avoados enquanto se sentava ao meu lado no sofá aconchegante da nossa varanda.

— Clara, Clara… Eu estou bem, mas só posso falar por mim. Não sei o que anda acontecendo com sua mãe, nesse último ano ela simplesmente vem desaparecendo pra mim. De nós. — Eu disse suspirando e logo em seguida tomando um gole do chá delicioso de erva-doce, mas querendo que fosse vinho. Confesso.

— Fazia tempo que a senhora não me chamava de Clara. E sempre acontece algo ruim quando eu sou chamada assim — Clarice disse rindo e se afundado no meu colo em seguida.

29 anos na cara e folgada desse jeito.

— Você é muito supersticiosa pra quem não acredita em nada, Clarice.

— Da última vez que a senhora andou me chamando de Clara, lembra do que aconteceu? A mamãe caiu da escada da universidade e quebrou a perna.

— Meu Deus! Eu não quero nem me lembrar do horror que foi ter que aguentar sua mãe querendo ir trabalhar no dia seguinte com a perna toda engessada — eu ri nostálgica. Rana era mesmo uma força inconstante da natureza, nunca deixou de ser.

Rimos juntas. E aquele som fez meu coração de aquecer. Clarice tinha uma ligação comigo que ninguém nunca teve coragem de questionar. Estávamos sempre assim, juntas e nos afetando. Deve ser porque foi gerada no meu útero dentro da barriga de Rana. Mesmo ela já tendo saído de casa há 8 anos. Tínhamos um laço gostoso de desenrolar.

— Ei! Vocês duas! — Ouvimos Caetana gritar descendo da sua moto. Que fique claro que eu nunca me senti segura com essa garota andando por aí em cima dessa moto que mais parecia um trator. Mas como eu já disse, ela era uma selvagem. Igual a mãe.

Caetana e Clarice eram idênticas fisicamente, mas não poderiam ser mais diferentes. Enquanto Clarice tinha um estilo clássico, Caetana era totalmente despojada e vivia vestindo as roupas de Rana, porque dizia que era mais fácil “pegar emprestado” do que comprar. E é assim ainda hoje. Agora mesmo eu conseguia ver ela vestida com uma calça lilás soltinha que Rana amava, mas que ela tinha sequestrado e nunca mais devolvido. E sobra pra mim ouvir as reclamações da mãe sobre as peças furtadas.

— MAMÃE!!!!!!!! QUE SAUDADE!!!! — E foi logo se jogando do lado oposto da irmã e me abraçando.

— Eu queria poder dizer que acredito em você, mas quando a madame se recusa a atender minhas ligações noturnas eu posso questionar essa saudade.

Duas noites atrás eu tinha ligado 15 vezes para Caetana. Acreditem. E ela simplesmente resolveu me ignorar. Isso porque o assunto da ligação era sobre o aniversário dela e da irmã. Esse ano decidimos que comemoraríamos em família os 29 anos das duas.

— Eu sabia que era sobre nosso jantar de aniversário, mamãe. E eu já disse que não importo com o que vamos comer, de qualquer jeito eu vou estar faminta e devorar tudo.

— Tô contigo, Cacá! — Clarice se manifestou — Mas se fomos falar das bebidas… Aquele vinho rosé que a senhora tem na adega que nossa avó mandou da Itália, eu apoio 100% que ele seja aberto no nosso jantar.

— Porra, Clarice, se não fossemos gêmeas eu diria que você tinha entrado na minha cabeça e lido meus pensamentos — Caetana disse fazendo um “high five” com a irmã — Libera esse mimo pra gente, coroa.

As meninas sabiam que minha adega de vinho era uma coisa sagrada e que só tomávamos algum vinho de lá quando a ocasião era muito especial. Como eu disse, a minha família e de Rana juntas formam um exército inteiro. Da parte dela, a mãe é palestina e o pai cubano. Do meu lado, mamãe é italiana e papai brasileiro. Some isso as outras ligações e imagine o resultado.

Depois que minha mãe se aposentou da prática médica, resolveu ir morar no interior da Itália pra cuidar da vinícola da família. Arrastou meu pai, que por profissão é jornalista, mas nunca largou a câmera fotográfica. Então, eu sempre digo que ele é fotógrafo e não jornalista. Coisa que ele aprova, então por mim está tudo bem. Inclusive, venho pensando muito em ir passar um tempo com os dois. Passar o dia inteiro tomando vinho e comendo muito massa. É um sonho muito doce. Mas fui tirada do meu devaneio por Clarice e Caetana levantando de supetão pra irem encontrar a mãe que estava estacionando o carro na garagem. Elas nunca perdiam esse costume. Sempre que uma de nós chegava do trabalho e elas estavam em casa, iam juntas nos buscar.

Presenciar essa cena me deu uma nostalgia gostosa, mas ao mesmo tempo uma angustia. Como se algo de ruim realmente estivesse prestes a acontecer. Clarice plantou uma semente muito perversa em minha mente. E olhe que a psicóloga da família sou eu. Ri de mim mesma, enquanto eu assistia as gêmeas agarradas em Rana. Clarice carregava os papeis da mãe, como de costume e Caetana segurava a mão dela em direção a nossa varada. De repente, fiquei nervosa com a presença de Rana. Coisa que estava se tornando normal nesses últimos tempos. Eu parecia aquela menina de 20 anos avistando-a pela primeira vez na Avenida Paulista em um protesto da UNE.

— Ei, estranha! — Ela disse assim que as meninas a largaram vindo em minha direção. E da maneira mais lenta que julguei ser, depositou um selinho molhado nos meus lábios. Coisa que não fazia faz tempo. Não sei se já mencionei, mas Rana é a mulher mais linda do mundo. O tempo só me fez ter a certeza do que eu já sabia há anos. A pele alva, os cabelos castanhos claros, os olhos mel e quentes demais, as sobrancelhas bem desenhadas. A boca rosada que parecia que estava sempre coberta de batom, mas era assim naturalmente. O nariz perfeitamente afilado as maçãs do rosto bem marcadas. Rana já tinha 53 anos, mas pra mim, nesse momento, ela está mais jovem e mais bela do que nunca.

— O que você tanto olha? — Ela perguntou sentando ao meu lado enquanto as meninas entravam na cozinha. Certeza que foram atacar nossa geladeira.

Você. — Eu disse na lata e vi sua expressão confusão — Estava te admirando e pensando que você não poderia estar mais bela do que está agora. Acariciei sua mão que carregava nossa aliança que foi feita por uma artesã chilena na nossa lua de mel.

— Você… — Rana me encarava com uma intensidade que fazia tempo que eu não avistava nos olhos dela. De repente, tudo voltou ao normal. Pensei.

— Eu… — beijei sua mão, nossa aliança, corri dos dedos pelo seu braço, vi seus pelos quase invisíveis se eriçarem e sorri de canto. Nessas alturas eu já estava beijando seu pescoço cheiroso e indo em direção a sua boca.

— Guilhermina, as meninas… — Rana disse num sussurro gostoso.

— Você nunca se importou com isso, Rana. Nossas filhas já estão bem grandinhas, lhe garanto que elas devem saber que as mães fazem sexo.

— E como sabemos! — Nos afastamos em um pulo quando ouvimos a voz de Clarice rindo e nos encarando. — Tenho certeza que até hoje Caetana não se recuperou daquela fase que vocês faziam sexo todas as noites na sala de casa. Pareciam duas coelhas que não tinham um quarto com uma cama enorme pra fazer isso.

Senti Rana se afundar no sofá enquanto nossa filha era só risos.

— Eu disse que elas escutavam Guilhermina! — Parecia que eu e Rana éramos duas adolescentes conversando com uma adulta sobre sexo, a situação toda era muito engraçada. E ficou pior quando Caetana apareceu a lado da irmã e começou a nos encarar.

— Você as pegou fazendo sexo de novo, Cla?

Eu tenho certeza que se tivesse um buraco no chão, eu e Rana estaríamos nele agora mesmo.

— Quase, quase, Cacá. Elas só estavam se beijando. Dessa vez.

Ouvi minhas duas filhas rindo de mim e da mãe e senti que por mais constrangedora acena esteja sendo. Eu estou me sentindo feliz. Como não me sentia faz tempo.

— Vem Cacá, deixa as duas aí namorando! — Clarice disse puxando sua irmã pra dentro de casa novamente — Mas cuidado meninas, não queremos mais uma criança nessa casa. Usem proteção.

E seguiram pra dentro rindo de nós. É isso que é ser mãe? Se tornar uma piada para os filhos depois que eles crescem? Aparentemente sim.

— Amor, você tá bem? — Cutuquei o braço de Rana.

— Hum? — E lá estava o mesmo comportamento estranho dos últimos tempos. Rana estrava presente e no segundo seguinte não estava mais.

— Eu perguntei se você tá bem.

— Ah, cariño, eu estou sim. Só cansada. Você sabe… O trabalho está sendo exaustivo. — Eu queria muito acreditar no que Rana dizia. E depois de meses esperando que ela se abrisse comigo, nesse exato momento eu torci para que o que saísse da boca dela fosse verdade.

— Vamos entrar, sim? Está esfriando. Eu vou preparar o jantar. O que você acha de uma lasanha de berinjela?

Eu quase babei quando ouvi “lasanha de berinjela”. Rana cozinhava muito bem, mas a lasanha de berinjela dela era imbatível.

— Eu acho uma excelente ideia. Eu venho desejando esse prato faz tempo!

— Então vem, me ajude a preparar tudo — Rana se levantou e pegou minha mão me arrastando em direção a cozinha. Mas parei no meio do caminho.

— O que houve?

— Nós… — Pigarreei apontando pra nós duas — estamos bem?

Vi a expressão de Rana mudar umas 100 vezes em menos de um segundo, se isso é possível. E da maneira mais lenta possível, vi a boca perfeita se abrir e dizer:

— Nós vamos ficar.

— Vamos mesmo? — Por Deus, eu parecia uma adolescente de 16 anos insegura.

— Você lembra do que estava escrito no meu cartar naquele protesto da UNE na Avenida Paulista quando nos vimos pela primeira vez? — Rana perguntou acariciando meu rosto.

— É claro que eu lembro Rana. Estava escrito: “El afecto sigue siendo revolucionario”. Você carregou esse cartaz em todos os protestos que fomos juntas depois do nosso primeiro encontro na Paulista. Arrisco dizer que ele está emoldurado em alguma caixa ali na nossa garagem.

Rimos juntas.

— Nosso afeto é revolucionário, Guilhermina. E eu também não sei o que está acontecendo agora, mas tenho certeza que vai passar. Porque nós… — disse se aproximando e colando nossos lábios. — Somos nós.

E nesse momento tudo fez sentido. Nós somos nós.

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