O amor obsessivo em Sir Philip Sidney: uma leitura de Astrophel and Stella, 107

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
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9 min readSep 2, 2024
The Kiss, coloured woodcut by Edvard Munch, 1902.

Recentemente, a caminho de Brasília para Salvador, encontrei no ócio do percurso, uma oportunidade para retomar uma reflexão que há alguns dias me acompanhava. O fluxo de consciência, dessa vez, havia pairado sobre um dos meus sonetos prediletos do Renascimento Inglês: Astrophil and Stella, 107, composto por Sir Philip Sidney. Logo, em um movimento rápido, me dispus a retirar o notebook da mochila, e redigir o pensamento crítico que sucederá nos parágrafos a seguir. Gostaria, por tanto, de estruturar meu raciocínio em três momentos distintos. Primeiramente, oferecerei um breve panorama acerca do Classicismo Inglês. Em seguida, estabelecerei alguns diálogos referentes à figura de Sir Philip Sidney e seu renomado ciclo de sonetos. Por fim, apresentarei uma leitura crítica do soneto 107 de Astrophil and Stella, tendo como ponto de partida o tópico do amor obsessivo.

A chegada do movimento renascentista à Inglaterra possibilitou o florescimento de intensas atividades artísticas e literárias no território. O período, que compreende o início do século XV a meados do século XVII, é considerado, na perspectiva de muitos críticos, como uma das “épocas de ouro” da produção literária anglófona. Isso decorre do fato da extrema criatividade do povo inglês, conforme apontam Cevasco e Siqueira (1988) [1], ter possibilitado o surgimento de grandes obras que, por via da sua completa magnitude, continuam a perdurar com ímpeto até os dias atuais.

Nesse contexto de alto florescimento cultural, a poesia, para além das obras de cunho dramatúrgico, foi vista como uma das atividades que nutriu de grande prestígio no campo literário. Influenciado pelos clássicos italianos, em especial pelos sonetos de Petrarca, os ingleses introduziram em terras britânicas uma modalidade singular de composição poética. Encabeçado pelo então poeta e embaixador Sir Thomas Wyatt, os sonetos elisabetanos possuíam, como uma de suas características centrais, um sistema métrico organizado em três quartetos e um dístico final. Ao contrário da maneira petrarquiana, constituída pela presença de dois quartetos e dois tercetos, o esquema elisabetano surgiu em vista às complexidades dos poetas ingleses em se ajustarem a forma poética italiana, em especial ao que concerne o caráter rítmico da tessitura.

Em vista desse fator, Burgess (2008) [2] afiança que, enquanto o italiano nutria de uma gama significativa de vocábulos que rimam entre si, o inglês nutria dessa limitação. Por esta razão, muitos dos poetas da época se viram tentados a ressignificar o seu modo de escrita. Assim, em resposta a esse desafio, alguns bardos, como o próprio William Shakespeare, adotaram em suas composições um esquema de rimas organizadas em abab; cdcd; efef nos três quartetos iniciais, e gg no dístico final. Outros, como Sir Thomas Wyatt e Sir Phillip Sidney, desfrutavam de um sistema rítmico estruturado em abba nos dois primeiros quartetos, cddc na terceira quadra de versos, e ee no último dístico. Essa transformação da poética que emergia em terras britânicas, era vista como um reflexo profundo da criatividade do povo inglês, que, por si, abriu caminhos para a adoção de novas técnicas para superar as limitações linguísticas existentes.

Nesse contexto, vale ressaltar que boa parte das produções poéticas que surgiram no curso da elisabetana foram produzidas por cidadãos pertencentes a alta nobreza e ao clero. Não raro, com efeito, esses sujeitos recebiam o título de “The court poets”. Suas composições se destacavam por uma dicção vocabular erudita, comumente utilizada por grupos que ocupavam posições favoráveis na sociedade da época. Entre alguns dos grandes nomes desse círculo literário, destacam-se: Sir John Harington, Edmund Spenser, Ben Jonson e Sir Philip Sidney, autor de um dos ciclos de sonetos mais importantes da época, intitulado Astrophel and Stella. A este último, iremos nos ater com maior precisão nos parágrafos seguintes.

Escrita entre 1582–1586, e publicada postumamente em 1951, a coleção narra em versos as paixões e emoções do amante das estrelas, Astrophel, por sua amada Stella. Para Reisman, a obra, considerada o principal trabalho poético de Sidney, reflete:

“a maturidade triunfante da poesia da corte elisabetana, e a adaptação tardia, mas espetacular, do petrarcanismo à cultura aristocrática inglesa. Continua a ser uma das coleções de poemas de amor mais comoventes, encantadoras e provocantes da língua, ainda mais poderosa no seu impacto devido à variedade de necessidades que o pressionam para se expressar — erótico, poético, político, religioso, cultural.” (Reisman, tradução nossa, 2012, p. 202) [3]

Assim situado, em Astrophel and Stella, o leitor se defronta com 108 sonetos construídos sob uma perspectiva antropomorfa. As composições que caracterizam a obra, refletem em seus versos um jogo que perpassa pelos mais variados estados e emoções da natureza humana. Caminha ora pelo desespero, pela angústia, zelo e cuidado; outras pela melosidade, esperança, sede de desejo, do corpo. Contudo, pode-se inferir que uma das temáticas centrais que regem a produção poética de Sidney diz respeito ao amor — que se revela, sobretudo nos versos, pelas lentes da obsessão. Esta obsessão emerge no corpo textual como uma das facetas chaves que modulam a personalidade do eu lírico. Para alguns críticos, as complexidades emocionais de Astrophel parecem refletir uma possível história de amor não correspondido entre Sidney e Lady Penelope Rich, considerando a então descrição do personagem como um cortesão da alta classe elisabetana.

Desta forma, para além do amor como recurso central que conduz a expressão lírica de Sidney, Reisman (2012) observa outro aspecto que salta à vista quando se considera a produção do autor: a altivez masculina. Isso se torna evidente quando examinamos a figura de Stella, que, ao longo do ciclo, desempenha um papel silencioso, estando presente apenas em alguns casos — como, por exemplo, ao recusar algo oferecido por Astrophel. Diante disso, alguns questionamentos se revelam: Seria Stella uma projeção imaginada do inconsciente de Astrophel? Ou seria o silêncio uma resposta direta ante as obsessões amorosas do eu lírico? Tais indagações, por si, abrem perspectivas para um exame minucioso das vicissitudes emocionais e psicológicas condicionadas na obra em questão. Nesse contexto, torna-se imperativo examinar como as temáticas previamente discutidas se encapsulam nos sonetos. Com isso em mente, proponho, nos parágrafos a seguir, uma leitura crítica do Soneto 107, intitulado: Stella, since thou so right a princess art. Ei-lo:

Astrophel and Stella 107: Stella, since thou so right a princess art

Stella, since thou so right a princess art
Of all the powers which life bestows on me,
There ere by them aught undertaken be
They first resort unto that sovereign part;
Sweet, for a while give respite to my heart,
Which pants as though it still should leap to thee,
And on my thoughts give thy lieutenancy
To this great cause, which needs both use and art,
And as a queen, who from her presence sends
Whom she employs, dismiss from thee my wit,
Till it have wrought what thy own will attends.
On servants’ shame oft master’s blame doth sit.
Oh let not fools in me thy works reprove,
And scorning say, “See what it is to love.”

Astrophel e Stella 107: Stella, já que és uma princesa tão justa

Stella, já que és uma princesa tão justa
De todos os poderes que a vida a mim concede,
Antes que por eles qualquer coisa seja feita;
Eles primeiro recorrem à essa parte soberana.
Querida, por um momento dê trégua ao meu coração
Que pulsa como se ainda devesse saltar para ti;
E aos meus pensamentos, concende tua jurisdição
A esta grande causa, que demanda de tanto labor e arte
E, como uma rainha, que de sua presença remete
A quem serve, afasta de ti minha sabedoria
Até que realize o que sua vontade atende.
A vergonha do servo ao mestre recai sempre.
Oh, que os tolos em mim não reprochem tuas obras
E em desdém, digam: “veja o que é amar agora”
(Tradução nossa, 2024)

Sendo assim, o eu lírico (Astrophel) introduz o seu poema com uma referência a Stella. Para tanto, descreve ela como seu amor maior, a princesa detentora dos poderes mais altos. Sua força, inclusive, consegue deixá-lo cegamente apaixonado a ponto de entregar-se por completo, tornando, por assim dizer, seu vassalo. Dessa maneira, por mais que o eu lírico disponha também dos seus poderes, tendo em vista a independência da sua figura, ele sente uma pretensa necessidade e, sobretudo, o prazer em entregá-los a Stella por ser a ela que deseja continuar devotando toda sua lealdade e amor. Essa ideia de subordinação — e, sobretudo, obsessão — que nutre a figura de Astrophel, torna-se perceptível ao se considerar o segundo e o quarto verso do primeiro quarteto: “of all the powers which life bestows on me […] They first resort unto that sovereing part;” que traz consigo uma imagem de como a mente e os desejos da voz lírica se encontram sob total domínio da figura feminina.

No segundo quarteto, cuja fluidez rítmica, organizada em pentâmetro iâmbico, confere aos versos um tom de lamentação, nota-se que o eu lírico, imerso em seu sofrimento platônico por Stella, suplica à amada que conceda trégua ao seu coração. Isso decorre do fato de Astrophel ainda nutrir de um profundo sentimento por ela, como sugere o seguinte verso: “my hart/ Which pants as though it stil should leape to thee”. Ainda sob este olhar, torna-se perceptível, adiante, que a voz lírica implora para que seus pensamentos sejam regidos pela força do poder e da soberania de Stella. Esse aspecto reforça não só o comportamento obsessivo de Astrophel, como também sua personalidade moldada sob o signo da devoção exacerbada. Assim, percebe-se haver, sobretudo ao longo dos versos, um ponto de tensão que culmina em dois polos: a) o desejo agudo pela figura feminina; b) e a necessidade premente de um controle emocional. A estratégia empregada por Sidney em sua dicção, em especial por via da construção psicológica de Astrophel, revela em seu núcleo uma valorização do antropocentrismo e das vicissitudes humanas, para uma compreensão mais adensada do existir.

No curso do terceiro quarteto, o eu lírico pontua: “And as a queen, who from her presence sends/ Whom she employs, dismiss from thee my wit” Nesse contexto, nota-se que Astrophel, ao empregar em sua descrição a expressão queen, torna a conceder, tal como realizado no quarteto inicial, um poder a Stella. Desta forma, em tom de súplica, como de praxe ao longo de toda composição lírica, a voz poética solicita a sua amada para afastar sua razão, pois só assim conseguirá alcançar o que ela mais deseja. Diante do papel silencioso que nutre a figura de Stella, aponta-se, como um de seus possíveis desejos, que o amor e o sofrimento atenuado de Astrophel cesse por si. Ou seja, que esgote todas as suas forças ao que concerne a busca contínua por um sentimento em algo visivelmente platônico, visto que não há, de fato, uma reciprocidade entre ambos.

No último dístico, torna-se perceptível que as lamentações e inquietações de Astrophel acabam sendo intensificadas. Para tanto, implora a Stella para não deixar os cretinos zombarem daquilo que um dia ela despertou nele: o amor. E, em tom desdenhoso, pontua: “See what it is to love.” Nesse contexto, ao empregar essa expressão em sua poética, eis que o eu lírico se posiciona em um ponto contraditório. Diante disso, alguns questionamentos emergem: seria o comportamento de Astrophel, de fato, um reflexo positivo e construtivo do amor? Ou seria a obsessão, traço que nutre a voz do poema, um ponto de tensão que distorce a natureza do sentimento — reduzindo-o a um estado de insegurança e desejo de controle? Assim perspectivado, o que se evidencia mediante a leitura crítica do poema, é que o eu lírico, Astrophel, parece sofrer de uma condição psicológica denominada erotomania. Dessa maneira, seus desejos e obsessões se infundem em um jogo platônico, no qual as projeções idealizadas se sobrepõem a própria realidade concreta dos fatos.

Notas bibliográficas:

[1] BURGESS, Anthony. A literatura Inglesa. Tradução de Duda Machado. São Paulo: Editora Ática, 2008.

[2] CEVASCO, Maria Elisa; SIQUEIRA, Valter Lellis. Rumos da Literatura Inglesa. São Paulo: Editora Ática, 1988,

[3] REISMAN, Rosemary M. Canfield. Critical Survey of Poetry: British Renaissance Poets. Salem Press, 2012.

[4] SIDNEY, Phillip. Sidney’s Astrophel & Stella. Poetry Foundation. Disponível em: Poetry Foundation. Acesso em: 14 ago. 2024.

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Lucas Carneiro
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Baiano, 23 anos. Graduado em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.