O animal do meu tio

Rafaela Maria
Revista Mormaço
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3 min readMay 24, 2022
“homem bicho” por Agostinho Santos

Meu sonho é encontrar aquele quadro que tinha no banheiro do meu tio. As bordas brancas presas em grampo, sem moldura, o que dava aquela impressão crua e arrogante de quem não tem tempo de comprar uma firula dessa, já que o jornal começa às 8h e é preciso esperar o próximo jornal às 21h. E nessa distância de horário o que cabe na espera é comer, tirar uma soneca e tentar mensurar o calor que faz durante a tarde. A moldura pode esperar, ela tem que esperar, afinal é só um quadro em um banheiro, não é como se estivesse num museu exposto. Literalmente tá todo mundo cagando pra isso e a falta de molde expressa muito bem a falta de tato.

Quando mais novo, inventava qualquer desculpa esfarrapada pra usar o banheiro e ficar sentado no vaso observando a pintura tosca que ela era, ainda mais estando dentro de um banheiro como se fosse o espelho de quem caga. Porque estar no vaso é meditação obrigatória que o organismo te impõe. E lá ficava eu sentado observando o quadro e gritando pro meu pai que já saía, que era só uma dor de barriga. Nada como o barulho de uma bola de papel molhado no fundo da privada pra enganar um homem de trinta anos cansado de ser pai.

Depois disso, como era recorrente irmos nos sábados para casa do meu tio, ficou bastante claro para o quadro que eu estava mudando, meus dedos cresciam um mais rápido que o outro, meu dente tinha aquele amarelo de preguiça juvenil de escovar os dentes e nascia pelo em tudo que é canto, até cheguei a pensar que estava me tornando parte da pintura, que ficava cada vez mais suja e craquelada. Talvez estivesse mesmo, porque foi por esses tempos que sofri baques amorosos e inconsistências com os ideais dos meus pais, que até hoje me enviam as mesmas mensagens, sobre os mesmos temas, como se a idade fosse um bom argumento pra validar a falta de empatia.

Eles queriam mesmo é que eu fosse um sujeito bem macho, bem musculoso, bem troglodita. E por cagar todos os sábados vendo a imagem perfeita do que meu pai queria que eu me tornasse, eu cismei que nunca seria como aquele animal. De bicho já tinha tudo, mas de animal nada se aplicava a mim. O engraçado de tudo isso é como o quadro me perseguia no zoológico, na televisão, na internet, nos livros. O animal traz essa complexidade rasa que se entende tudo sem compreender quase nada, porque no final das contas tudo que dizemos passam pelos nossos achismos egocêntricos de alfa, ignorando todo o mundo de possibilidades que nunca vamos imaginar. Não cabe a nós entender o animal, mas cabe a eles nos observar em silêncio e cuspir na nossa cara cheia de apliques e adornos.

Só fiz as pazes com o quadro aos 17, quando já não tinha paciência nenhuma de estar em uma mesa ouvindo meu pai bostejar enquanto o meu tio aplaudia. Nesse dia, eu sentei com o animal do quadro, trocamos respirações e movimentos, mas as palavras deixamos para os bichos da sala de estar. Para nós apenas um dedo de golira e uma caganeira inventada. Logo eu, que sofria a semana inteira com prisão de ventre, quando chegava nos sábados meu intestino me dava a sensação de alívio.

Eu queria tanto encontrar essa pintura no meio da rua e levar ela pra casa no ônibus, xingando o caos social e beijando com a orelha o fone de ouvido; o único que me dava o pertencimento, a calma e o tesão de ter os olhos abertos e a coluna ereta. Mas nunca encontrei o maldito quadro, tampouco sei o que aconteceu com os pertences do meu tio depois que ele faleceu. Deveria ter pedido o quadro, mas como se fala pra uma viúva que o meu sonho era fumar mais um baseado com o quadro que tinha um macaco sentado na privada com uma escova de dente e um pedaço de papel higiênico nas mãos?

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Rafaela Maria
Revista Mormaço

Estudante de Letras pela Universidade de Brasília, designer gráfica, fotógrafa e escritora de contos, poesia e críticas literárias. ig: @rafaelamria