o bicho instruído que carlos falou

Masso Otembra
Revista Mormaço
Published in
2 min readNov 22, 2020

uma poesia despótica
abranda-me os ossos
ai, meu Deus, tudo que eu queria
era sofrer um bocadinho
mas logo me vem esta governante
com metáforas de doçura
de o amor ser
o sem-querer do mundo
esta beleza que lhe aconteceu
e eu queria delongar-me
numa poesia política
aterradora
mas fico pensando só
que o amor é a desciência
da iridescência
da luz violeta no rosto dela.
entendeu?
nem eu.
eu queria a tormenta da descoberta
de que tudo não passa de coisa cognoscível
mas vem o amor, essa desgovernância,
esse abrir do bico de um passarinho
que regurgita o alimento na boca da cria,
esse alicate cego que serve para entortar um arame
sem nunca o cortar,
esse gelo der

⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀retendo
esse curto-circuito da razão condutora
esse impulso elétrico
esse mais
muito mais
que um impulso elétrico:
língua — ou não.
lábio — ou não.
langor ou não,
ligar ou não,
levar ou não,
infinitivo.
ou não.
ou pretérito.
ou não.
por imperfeito que fora.
ou não.
por futuro que o sinta.
por conjugação que a gente desconheça
e não saiba fazer.
o amor desexiste a dois.
é esta caneta falhando
esse lápis com a ponta ruim,
esse pincel acabando a tinta,
esse esforço,
essa sangria,
essa vitrine,
essa poesia que não quer acabar nunca!
aH!
um horror.
desgraça incólume,
palavrório descarrilhado,
verbohemorragia,
descontrole,
eternidade,
o amor é o fim.
o fim, não.
o descomeço.
o amor é o futuro
pingando gotas de orvalho
no céu da minha boca.
parece que acabou.
a poesia, quero dizer.
parece-me ser este o sentido correto do mundo:
amar
não para fazer poesias
mas justamente
para acabar de fazê-las
e caçar outro modo de viver
no concreto.
no concreto dos encontros.
aquela coisa da lei natural…
não sei.
é isto, o amor:
“não sei.”
só sei que é assim.

(maio de 2018)

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