O carrinho azul turquesa

Lucas Belo
Revista Mormaço
Published in
4 min readJun 25, 2021
Foto: Diego Pisante

Parei para pegar a metade de um cigarro do chão sem me preocupar com a fileira de carros que me precedia. O motorista deve tê-lo jogado fora depois do semáforo abrir. Motoristas normalmente são muito limitados, não conseguem dirigir e fumar ao mesmo tempo, só xingam e buzinam, como se não houvesse outro meio para expressar seus contratempos.

Mesmo conduzindo uma carroça cheia de desperdícios, eu ainda era capaz de fazer um pito, meus lábios davam conta sozinhos de segurar o cigarro, assim que minhas mãos se ocupavam somente da governança do carro. Eu engolia a fumaça dos carburadores enquanto avançava na rua Cardeal, apesar disso, o sabor do Winston Azul era inigualável, como o bom dia que eu recebia dos manobristas entediados de tanto assistirem às câmeras de segurança e aos vídeos pornôs de seus celulares minúsculos.

Sempre arriando as calças, Netinho saia da guarita e vinha dizer que não tinha nada para mim naquele dia ou que Maneco já havia passado e levado todos os fardos de papelão primeiro, que eu tinha que começar a acordar mais cedo e que mais uma vez teve de fechar o estacionamento depois de ter dado seu horário, por causa do desgraçado do doutor Vicente. Éramos parecidos nesse aspecto, gostávamos de praguejar contra motoristas e doutores, principalmente aqueles cujos carros eram modelo 4x4, que o rally era passar por cima de gente pobre e miserável.

Joguei fora a bituca do cigarro só depois de tê-lo fumado por completo e com o coração apoiado no guidão da carroça, perguntei a Netinho sobre a Rita. Ele disse, indiferente, que não tinha notícias dela, mas que já faziam alguns dias que ela não aparecia para buscar seu carrinho.

Rita guardava seu carrinho azul turquesa no estacionamento de Neto, pagando 50 reais mensalmente. Era uma mulher mal humorada e antissocial, que insistia em ser vendedora ambulante mesmo tendo prejuízos no fim do mês, ela dizia “essa ideia de que o vendedor precisa ser simpático é conversa fiada, as pessoas compram bala de coco, chocolates e salgadinhos, porque têm fome e tostões sobrando”.

Era ela, não os papelões, que me fazia descer a rua Cardeal no meio dos carros todos os dias. Ocupávamos juntos uma faixa inteira de rua puxando nossas carroças, Rita batendo os pés e bufando de minuto em minuto, eu, deslumbrado, sapateando com a ovação das buzinas. “Deus queira que suas vendas sejam boas hoje”, toda vez que eu dizia assim, ela grunhia, suspeitando de Deus, “serão apenas suficientes e não por causa dele”. Sua rigidez não era só discurso, Rita tinha desarranjos com tudo que não a favorecia, isto é, de natureza duvidosa, como a polícia que vez ou outra tomava-lhe as mercadorias. Estava presente em toda manifestação, vendendo água e lutando por sua vida. Eu admirava sua forma de ser, por isso me preocupava tanto o seu sumiço.

Uma moça miúda e com voz de criança se aproximou da gente e perguntou: “é aqui o estacionamento do Neto?”, orgulhoso, Neto assentiu como se fosse mesmo o proprietário do estabelecimento, não o manobrista. “É que minha mãe guarda o carrinho azul turquesa dela aqui… eu vim trabalhar no lugar dela hoje”. Com o peito apertado, não tive condições de prosseguir a conversa com a filha de Rita, mas a menina continuou naturalmente “ela foi atropelada perto de casa e está com uma tala nas pernas, de repouso a contragosto. O médico ouviu tanto desaforo, que ameaçou chamar os seguranças”.

Neto levou a moça até o carrinho azul turquesa de sua mãe, recomendando os cuidados com furto que se deve ter ali naquela região. Embora um pouco mais sossegado de saber que Rita estava viva, eu ainda estava absorto com a notícia, como é possível os motoristas atrapalharem tanto assim a vida das pessoas e não serem condenados a andarem a pé para sempre? Vivemos numa carrocracia mesmo, onde calçadas e baixas velocidades são consideradas inimigas.

Me despedi com pressa dos dois, porque o dia prometia ser longo. Botei a carroça na rua e decidi fazer o caminho da avenida mais movimentada. Em meio aos carburadores e escapamentos que vociferavam feito bestas, eu puxava a minha carrocinha sem direção hidráulica. Lento, cumprimentando porteiros, pedestres, perdendo tempo com passarinhos e assobiando para os vira-latas sem dono. Era preciso impedir o trânsito da cidade pela Rita, pelo meu amor.

--

--

Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.