o casaco lilás da tia albina

Beatriz Helena
Revista Mormaço
Published in
7 min readApr 1, 2024
(recorte da aquarela a mulher, o café e o cachorro. autoral)

era sorvete de creme todo domingo. a tia albina não comia chocolate. o tio ari não comia passas. creme sem graça.

eu morava com a vó e a tia norma, que colecionava pedras. a tia passou sete meses rezando e trabalhando numa mantinha azul para a nossa senhora de aparecida de madeira que ficava na sala. quando terminou, desapareceu. tinha dezoito anos e prometeu voltar. eu adotei as suas pedras e pus um nome em cada uma.

minha mãe e meu pai morreram no parto, cada um à sua maneira. era o que me contavam. já mais velha, morei com tio ari, tia dora, o palito e a vovó. mas isso foi bem depois!

tia albina era ministra da igreja e professora. diziam que na adolescência era meio dissociada. ela usou um único casaco lilás em todos os invernos para pagar uma promessa. quando sujo, passava frio. era um voto franciscano de extrema pobreza. diziam que a vó morria de desgosto e falava albina, filha, você já é pobre! quinze anos depois, o casaco virou a cama do palito. é tudo que sei. era mais fácil ela admitir que frequentava o pai josué do que falar da promessa.

a casa da vó tinha muitos rangidos e movimentos. a maioria era de coisa nenhuma, mas uma vez o pai josué incorporou no quintal e vociferou como se fosse uma expulsão das entidades que abriam as portas à noite. anos depois, as portas teriam se aberto de novo, mas já era outra coisa.

o primo rogério, filho da tia albina, a do casaco lilás, quando grande, foi ao pai josué para curar uma dor de cabeça que já contava cinquenta e sete dias. o pai de santo estava cego e afirmou, como quem lia as doze tábuas, que o primo casaria com hortência.

a dor de cabeça passou e rogério pôs-se a cortar flores da varanda todo domingo para esperá-la na porta da igreja. no décimo sexto buquê de ladainha, hortência já chegou de flores, branco, anel e homem. a dor de cabeça voltou e o primo rogério correu para o sorvete de creme e o colo da vó, que disse que a paixão que bate no peito é a mesma que mata do coração. o que importava era que a família era como um arroz de panela velha. pararam de chamar o pai josué.

o tio zé, o mais novo, foi embora para são paulo. dizia ter arrumado emprego com banqueiros. ou bancários? que seja. mandava envelopes gordos para a vó. a nossa casa ganhou um teto de reboco, liquidificador e torradeira.

em setenta e alguma coisa, a vó juntou as sobras dos bolos de dinheiro e foi a são paulo conhecer a casa do tio zé. chegou de surpresa e o zé não gostou lá muito, não. ninguém entendeu com o que ele trabalhava. esse foi o momento mais solto do arroz familiar: a vó passou seis meses sem responder as cartas do filho. até que o tio zé mandou uma revelando ter visto a tia norma. disse que gritou, gritou e ela não reagiu. a vó desassossegou-se e gastou cem folhas, uma mão e sete dias respondendo todos os atrasados. mas, depois disso, ninguém nunca mais soube de tio zé por ele mesmo.

o primo rogério, aquele doente por hortência, e a prima rogéria eram ambos filhos da tia albina e de seu marido, obviamente, rogério. no interior tem dessas coisas. nunca troquei mais de três palavras corridas com esse tio. sobre ele digo duas: homem-tédio. a tia albina viveu um amor xoxo. o arroz da vó sem sal e sem alho, dizia a tia norma.

a rogéria foi a prima que deu ruim. perdemos a afinidade aos onze anos quando ela me convidou para fumar um cigarro. que porcaria! ela era mais nova que o rogério. jurava pela vida do palito, que não tinha nada com isso, que sempre via hortência fuzilar o irmão de arrependimento. rogéria escreveu, na clandestinidade, bilhetes trocados e assinados de um para o outro. marcou um encontro na beira do matagal e ambos compareceram. rogéria guardou essa informação como moeda de troca.

hortência teve uma filha linda que era a cara de tia albina, que era a cara da vó. três anos depois, o seu dito marido fez o passamento. viveram felizes à luz do dia e longe do matagal hortência, rogério, a filhinha e a pensão por morte do falecido defunto. foi então que a família voltou a interagir com o pai josué, que havia voltado a enxergar.

num almoço de domingo, os apaixonados revelaram o porquê da criança ser tão parecida com a tia e a vó. rogéria levantou-se praguejando por ter perdido assim, tão fácil, tão mole, a sua moeda. tia albina ficou lilás igual a cama do cachorro e pediu perdão ao defunto olhando para o ventilador de teto. rogério, então avô, deu um sorriso de dois milímetros que merece ser ordinariamente explicado: o seu coração estava embalado no manto quentinho da felicidade. a avó já começou a dizer que o que importava era o arroz. eu e o palito comemoramos latindo e saltitando.

tia albina queria porque queria que pai josué pacificasse o recém-nascido conflito entre defunto, hortência e rogério seu filho. a entidade dele revelou que o verdadeiro problema da família era a rogéria, que havia herdado algum gene oculto da tia norma, que não teve filhos, para transferi-lo diretamente pelo DNA.

tia albina gastou a metade do seu português para que rogéria aceitasse se submeter ao trabalho do pai josué. não conseguiu. mas eu, que morava com a vó e sabia de tudo de todos, fui e falei entre dentes para a rogéria que, se ela não aceitasse, a tia albina saberia quem estava namorando o coroinha na sala dos padres. gastei uma moeda para a vó não morrer de desgosto.

mas a vó quase morreu de desgosto de novo. após o aceite espontâneo da rogéria, a tia albina investiu a outra metade do português convencendo a velhinha de que a neta endemoniada precisava do manto de nossa senhora da aparecida da tia norma para o descarrego. não conseguiu. a vó tinha um senso que aquele pedaço de pano bordado e trabalhado atrairia a minha tia de volta.

a vó tremendo toda, o palito no sovaco, e eu, segurando o seu outro braço e o choro, fomos ao pai josué e lhe entregamos todas as minhas pedras da tia norma. ele as aceitou e a manta foi poupada. eu perdi o que era meu, mas a vó foi salva do desgosto novamente. tudo culpa da rogéria.

o tio ari casou com a tia dora e foi pescador a vida inteira. tiveram somente um filho, o reinaldo, que é pescador a vida inteira também. moravam no município vizinho que tinha praia, vinham todo final de semana. em setenta e outra coisa qualquer, o tio ari passou a ver tubarões, baleias azuis, siris gigantes e minha mãe. foi nessa mesma época que as portas da casa da vó voltaram a se abrir de madrugada.

depois de cinco dias sem dormir, com todos os cabos de vassoura e os facões, sentadas no sofá, o palito no colo, eu e a vó vimos o tio ari irrompendo na sala às três da madrugada, berrando que ivone parasse de se esconder. minha mãe era a irmã preferida dele. passei a duvidar de sua morte, ao mesmo tempo que desconfiava da vida da tia norma.

o tio ari e a tia dora vieram morar com a gente e o reinaldo ficou no vai e vem mandando peixes e dinheiro. foi tudo muito rápido. no domingo seguinte, o tio ari meio anuviado e a gente almoçando. escutamos um assobio e uma castanhola. o palito correu para a porta. era a tia norma com uma saia colorida, vinte e oito anos e um pote de sorvete napolitano. nos primeiros minutos, eu só fiquei metade feliz, porque a minha mãe não apareceu junto. depois a outra metade foi aumentando. a família virou um arroz colorido. quem continuou de fora foi o tio zé, o metido a banqueiro paulista, que segundo as boas línguas estava no mesmo plano que o marido da hortência.

tia norma foi a minha mentora de pedras. pedras novas. as antigas foram enterradas em algum lugar no mato, sacrificadas pela rogéria, que, deus me perdoe, tem um gênio ruim que brotou sozinho dela mesma. por isso que o ebó do pai josué foi mesmo que nada. a tia norma era completamente normal.

quando o palito foi para o céu canino e seu corpinho foi velado embalado no casaco lilás, resolvi perguntar à tia albina para que tinha feito a promessa, cuja única evidência iria para debaixo da terra.

estava quente, eu estava travada prevendo um corte brusco. mas estava de luto e merecia um momento de loucura. eu disse tia, quero fazer uma pergunta. ela sentou-se à minha frente, pegou as minhas mãos e disse o palitinho vai para os braços da sua mãe. será feliz assim na terra como no céu. as lágrimas desviaram-me.

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