O cheiro dos outros

Lucas Belo
Revista Mormaço
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3 min readAug 26, 2021
Fotografia: Walter Firmo

Meu colo cheira a estranhos, estou a caminho do trabalho, no ônibus, e levo junto comigo a virilha de todos que roçaram em mim durante a madrugada. Lembra a fruta azeda, madeira recém lixada, carpete envelhecido, paredes infiltradas, só não lembra a mim mesmo, ao meu próprio odor, que uma hora dessas deve estar escondido na toalha de rosto da casa dos meus pais, nos banheiros dos terminais de ônibus ou debaixo do focinho do meu primeiro cachorro. Por estar tão longe, quer dizer, por não existir mais, eu forro de colônia importada a roupa que trago no corpo para, pelo menos, cheirar como alguém que escolhe seu próprio aroma e, quem sabe, preservar a imagem austera que tenho em sala de aula.

Mas adolescentes são predadores, tensionam a sala de aula a fim de exprimir o menor dos vacilos, o mais bobo dos medos, até que descobrem sua presa e se encarregam de devorar seu juízo até o osso, não sobrando nem a geleia para contar história. Eu entendo tanto de adolescentes quanto de metáforas, sou professor de português, ora, e além do mais, viado. Nos meus ossos as ligações são feitas de retórica e no coração as veias são de poesia, se me esquartejarem só restará a palavra enfim, quase como Jesus.

Entro na sala fazendo um leque com o diário de classe, porque meu hálito abriga cigarro, cabernet sauvignon barato, bala de canela e café com açúcar, cubro a boca e falo um bom dia sem muito fôlego para abafar minhas palavras etílicas. A maioria não responde, ocupados de sono e má vontade como sempre, eu presumo, mas quando decido ligar os ventiladores da sala, imediatamente as reclamações surgem como besouros em noites de calor. “De fato, a manhã está fria”, respondi a eles, “mas é preciso nos prevenir das doenças contagiosas que a época do ano oferece como se fosse uma xepa”. Estar à frente de uma sala de aula significa fazer escolhas autoritárias em muitas ocasiões e lidar, constantemente, com a reprovação de um ou outro e, às vezes, até de um grupo todo. É um jeito de treinar para longevidade.

Direcionei-me à lousa após passar uma lista de chamada para os alunos — eu não gritaria seus nomes — e encarei a minha silhueta magricela que refletia nela, parecendo um vulto. O quadro rejeitava o cheiro dos outros que saia de minha boca e me devolvia, sarcástico, zombando das minhas ausências, percebi, então, que a sala fazia silêncio à espera do início da aula, um silêncio inusual diga-se de passagem, certamente estavam farejando o meu desespero e se preparavam para perguntar coisas afiadas do tipo “o que aconteceu com você hoje, professor?”, “quem é que veio para aula e não tomou banho?”, “por que sua jaqueta está suja?”.

Então, tentando recuperar a dignidade de uma noite, quer dizer, de uma história decadente, escrevo em vermelho o cabeçalho com a data do dia lembrando o sangue e o vinho que consumi à noite e, como quem dá o bote, a sala de aula toda começa a gritar e tremer em risos. Tapei os ouvidos num impulso, pois as palmas perfuravam meus tímpanos como ferrões de abelhas, agachei, me tornando uma bolota, e torci para que meu cheiro se comprimisse assim como meus membros, quando um aroma delicioso de bolo de chocolate e refrigerante invadiu meu nariz. Lentamente, me virei para os alunos e eles estavam em festa, levantando doces, salgados e sodas acima da cabeça como se fossem troféus, muito maiores que eu e meu acovardamento. Era o meu aniversário. Levei ao rosto, novamente, o leque feito dos diários de classe e me permiti um sorriso atrás das pastas. O vento afobado dos ventiladores soprava um pouco de mim para dentro do meu nariz. Talvez eu ainda não entenda tanto de adolescentes como eu pensava. Talvez a sala de aula me ajude a reencontrar o meu próprio cheiro. Fico feliz de não ter faltado.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.