O dia em que Luanda gritou basta

Dayane Tosta
Revista Mormaço
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5 min readSep 8, 2020
Imagem divulgação da redação @jornaldovale

Luanda estava com dor de cabeça naquela noite, pensando em tudo que poderia ter dito à Caio e acabou não falando. Tirou a calça jeans e deitou-se na cama contemplando o teto. Sentiu as lágrimas escorrendo. “Droga, esse babaca não merece meu choro”, pensou. Queria desaparecer, evaporar como as lágrimas, sumir. Mas nada disso era possível. Precisava falar para ele sobre as dores que lhe feriam o peito. Mas não sabia verbalizar. Aprendeu que era mais seguro ficar em silêncio.

O telefone tocou, viu que era Caio e pensou em não atender, estava de saco cheio daquela relação. Mas atendeu.

– Oi.

– Tá brava?

– Estou com dor de cabeça.

– Você sabe que eu te amo, né? Você é meu chocolate!

– Tudo bem, vou desligar para tomar um remédio.

– Me chama antes de dormir… Beijo!

Era sempre assim, ele maltratava o pobre coração da menina e voltava cheio de belas palavras e às vezes até flores. Naquela dança de morde e assopra ela sempre saia ferida.

Luanda, que da vida pedia muito pouco e entregava tudo que tinha para todos a sua volta, não sabia como dizer que não suportava mais o peso de ser a namorada daquele rapaz bonito com os olhos dignos de estrelarem qualquer novela da Globo. Daquela relação afetiva muitos silêncios permaneciam em suspenso, no ar. Muito do que ela queria lhe dizer foi ficando preso na garganta, esquecido em algum canto da memória.

Eles se conheceram na biblioteca da universidade pública que ambos estudavam. Ela era cotista e ele jamais precisou usar transporte público. As moiras que costuram as linhas que moldam o destino foram audaciosas ao unirem seres de origem social tão diversa. Caio era estudante de Engenharia Civil e Luanda cursava Direito. Ele era tão vaidoso que gostava de ostentar as suas certezas, muito argumentativo, orgulhoso por sempre ter razão. Um dia ela lhe disse um tanto tímida:

– Eu li outro dia que o corpo tem memória. Você sabia que as células guardam toda uma carga de experiência e isso define o funcionamento do organismo? Está preso nos genes de cada indivíduo toda a história da evolução humana. Isso me parece tão louco.

– Ai, Lu, você fica impressionada com cada informação… Você é realmente como uma criança encantada com um vagalume — respondeu ele em tom de deboche.

– Eu tava pensando que…

– Olha que fofo: ela pensa! — Interrompeu Caio, rindo.

Ela silenciou. Deu risada concordando com ele. Não foi a primeira vez que deu a ele o lugar de dono da razão. Cedia sempre quando discutiam, pelo hábito inconsciente de não contrariar pessoas que tinham na pele o privilégio de estarem sempre certas. Ela não percebia, mas a cada nova discussão sua mente ia guardando uma série de respostas que ela gostaria de ter dito a ele. Essas palavras trancafiadas nos recônditos mais secretos da sua alma foram se acumulando espremidas entre tantas experiências de abuso.

Ela se olhava no espelho e tentava entender porque era tão difícil dizer “basta”. Pegou o celular a fim de se perder pelas redes sociais e esquecer um pouco de si. Ficou rolando o feed aleatoriamente, e olhando aquela felicidade artificial, percebeu o quanto estava infeliz. Lembrou-se do dia que ficou mais de uma hora esperando Caio na porra daquele playground do condomínio grã-fino com nome de flor no bairro chique. Ficou ali amuada, encolhida, ensimesmada, excluída de toda possibilidade de ser uma mulher digna de entrar na casa do namorado.

Nunca conheceu a mãe do rapaz que dizia amá-la. No fundo cultivava um certo pavor diante dessa possibilidade, tinha medo de esquecer como se conjuga os verbos e falar palavras atropeladas, sem coerência e a julgarem burra. Não queria ser vista como burra por ela.

Abraçou o travesseiro e chorou acolhida pelo desamparo de todos os infelizes. No peito, a solidão de quem vive o abandono em meio a uma companhia que não dá abrigo. De tanto chorar acabou adormecendo.

No dia seguinte, Caio foi até a sua casa com uma caixa de chocolate. Mas não encontrou Luanda. Ficou com a sensação de viagem perdida, no peito o medo do abandono. Voltou para casa um tanto aflito. Pensou “se ela me deixar não vai encontrar outro que queria namorar com alguém que mora tão longe”.

Quando ele chegou em casa, se surpreendeu com a presença de Luanda sentada em sua cama:

– Apresentei-me como sua namorada e sua mãe me pediu para esperar aqui.

– Que surpresa incrível!

– Eu vim me rastejando sobre o pouco de autoestima que me restava para dizer que eu não quero mais continuar com a nossa relação. Por muito tempo eu me calei diante de suas brincadeiras racistas e machistas. Eu me calei porque pensava segundo a lógica de que quem ama releva muita coisa para que uma relação dê certo. Mas percebo que isso não é amor, é subserviência e humilhação. E por todos os meus antepassados que sofreram no corpo o martírio da escravidão, eu te digo que nunca mais me calarei diante de nenhuma piada racista. Não permitirei que o seu privilégio branco esmague a minha autoestima, não mais me colocarei no lugar daquela que aceita não conhecer os sogros ou não entrar na casa de uma pessoa que diz ser o amor da minha vida. Sua voz por muito tempo se impôs sobre mim determinando o meu silêncio. Hoje não mais me calarei. Eu não estou sozinha, sou parte de milhares de vozes que cansaram de se calar. Senta e vê a nossa força, estamos nos impondo e agora é a sua vez de ouvir em silêncio.

Caio estava atônito, ele tentava falar, mas temeu a fúria daquela mulher, não teve voz diante daquela potestade. Queria se desculpar, mas não sabia como. Estava constrangido e ao mesmo tempo irritado, sentia uma confusão de sensações, e quando Luanda fez uma pausa para um respiro ele disparou:

– Meu bem, eu nunca fui racista com você. Sou um cara desconstruído, Pedro meu melhor amigo é negro. Você está fazendo uma tempestade num copo d’água, és mesmo uma criança que não entende as minhas brincadeiras, para um pouco com esse mimimi e volta a ser a minha Luandinha

– Cala a boca, Caio — interrompeu Luanda — Chega! Você tem uma masculinidade tão frágil que toda vez que se sente confrontado infantiliza a minha existência, essa é só mais uma forma de me silenciar, conter a minha fúria, e não mais serei contida. Eu vou embora da sua vida, espero que reflita sobre o seu racismo, espero que entenda o quanto tem sido machista, espero mais ainda que você se foda.

Saiu andando como quem ganha uma guerra.

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Dayane Tosta
Revista Mormaço

Escrevo histórias e poesias porque viver não é o bastante. Publico na revista Mormaço Editorial. Mãe de Valentina. Professora por vocação e carma.