O homem de negócios

Lucas Belo
Revista Mormaço
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5 min readApr 29, 2021
Foto: Eleuda Carvalho
Foto: Eleuda Carvalho

Perto de mim, Anderson terminava de roer o resto do bode que mainha preparou para o almoço. Ele parecia triste porque o osso já não tinha mais o tutano, nem o courinho duro, fedorento e cabeludo da pele do bicho que estava acostumado a comer. Normalmente a gente deixa nos pratos, mas os tempos vigentes exigem comprometimento até mesmo com as sobras.

Ló, nosso vizinho, tem recolhido os estercos da rua e juntado para vender na cidade como adubo. Acabou recebendo a alcunha Ló rola bosta, ele ficou bravo feito uma onça. Eu disse que não tinha nada não recolher os estercos dos jegues dele e fazer dinheiro, era inclusive uma ideia das boas, ousada… agora, a merda dos outros deixasse onde estava porque dava impressão ruim e as pessoas falavam.

Fazer negócios onde as terras são minguadas e as pessoas emurchecidas pelo sol é preciso muita criatividade, então, aqui no São Pedro, gente que vem de fora fica impressionada com o que se ocupa a negrada dessas bandas. Francisca de Damião é uma dessas, consigo vê-la daqui preparando suas raspadinhas de coalhada azeda. E boa! Faz sucesso nas vaquejadas e torneios de futebol daqui do povoado. No começo a ideia parecia mesmo era um passe direto para um dia inteiro de disenteria, todo mundo recomendou que desistisse daquela loucura no início, mas agora já se tornou patrimônio, até o prefeito e a primeira-dama já provaram a iguaria.

Tem Joana também, que domestica oropa e enxú para produzir mel. O produto em si, nem é o principal motivo do comércio dela ser um sucesso, mas, sim, sua habilidade no manejo de colmeias. Tem gente que vem de longe só para conferir com os próprios olhos a mulher que bule com abelhas e nunca é picada. Contam a história de que Carmelita, sua mãe, foi picada por uma abelha-rainha quando ainda estava grávida dela, assim que nasceu, ao invés de lágrimas, desceram dos olhos um líquido espesso e castanho… mel. E desde então, ela tem parte com os insetos voadores. Quem conta a história é Felipa, a parteira da região, mas ninguém nunca teve coragem de perguntar diretamente nem à Joana, nem à Carmelita, já que o povo deles é conhecido pela valentia… por muito menos, já furaram um.

Acho que são de juízo, só mesmo os daqui de casa. No povoado inteiro sou o único filho único com um pai e uma mãe que escolheram dessa maneira. A maioria tem de sete irmãos para lá. Na verdade, existem outros filhos únicos, ou “único filho” como chamo, mas, mais por falta de sorte da família que pelo contrário. Vera, por exemplo, já enterrou quatro dos seus cinco filhos, sobrando só Juneca e o desacontecimento da maternidade. O ofício de seu único filho tem sido buscar o que restou dela nos botecos dos arredores, resignado.

E tem João de Rita, dono de metade das terras das redondezas, com quem fechei negócio um tempo desses. Ele vinha nervoso, gritando o nome da pelada em minha direção. Minha mãe, que assistia novela na sala, apareceu na porta me dizendo “Eita… Seu João tá gritando o nomão da pelada pra tu, menino. Você não corre, não, que ele te mata! O que foi que tu fez dessa vez?”.

Anderson reconheceu a voz grossa e fanha do velhinho, mas não deu importância, continuou roendo seu osso atrás das minhas pernas. O esperei olhando para os cachecóis das carnaúbas, me perguntando se era possível guardar neles os insultos e palavrões que saíam feito saúva daquela boca muchibenta do fazendeiro.

Minha mãe, avexada com a situação, entrou, desligou a televisão e se colocou depois da varanda cruzando os braços, como se, dessa maneira, expelisse toda a ignorância de João de Rita para longe de seu filho. Ainda demoraria um tempo até que ele chegasse no terreiro de casa, então, para adiantar a prosa, minha mãe gritou forte buscando saber, ansiosa “O que é, João? Tá procurando Gabrielzinho pra quê? Deixe o bichinho sossegado, moço!”.

Antes de responder, gritei também “O que foi João, o cachorro matou suas galinhas, foi? Não tenho nada com isso!”, e o velho apertou o passo como se estivesse atrasado para me esganar. Chegando a nossa frente, colocou as mãos nos joelhos recuperando todo o ar que lhe faltava nos pulmões e disse: “Eu já vi gente ligeira nessa vida, mas como tu, fuleiro, eu tô pra ver! Não é à toa que é conhecido na cidade como ‘Saruê do mato’!”

É melhor que Ló rola bosta, pensei em silêncio, procurando conter a ironia. Mainha é quem tinha ficado impressionada com os dizeres, levou a mão rente a boca, vocalizando o horror que estava sentindo bem baixinho, até João continuar “a pois, dona Maria, seu filho é um vagabundo! Tu não acredita que ele me vendeu esse cachorro por duzentos reais e passando uma semana, quando fui dar conta, o bicho tinha sumido?! Fui procurar com Aperecida, se ela tinha reparado num cachorro de raça, peludo, branquinho, ainda filhote, passando por ali e ela me disse que sim, que era Anderson, o cachorro de Gabrielzinho, não fazia mais de hora que os dois tinham passado ali na frente. É mole, rapaz! Como é que tu vende uma coisa para alguém e depois toma, nego velho?!”

Seu João gostava mesmo era de prosear, rico de nascença, nunca teve jeito para os negócios, diferente da maioria ali do São Pedro. Sempre quis ter mais dinheiro que ele, mas só na condição de não virar bestalhado. Se fosse assim, preferia viver na miséria, mas ativo. O homem chegou com o diabo na boca e agora polinizava um “nego velho” na prosa, implorando para ser passado a perna. Peguei Anderson no colo, o virei de barriga para cima e disse “escuta, seu João, eu trabalho com cachorros, é conveniente que eu tenha outros da mesma raça para vender, não acha? Além do mais, tenho culhões, igual a Anderson. Napoleão, o filhote que te vendi, já passei castrado, não foi?”.

O verdadeiro homem de negócios seduz o cliente com pouca retórica, porque as palavras já foram preparadas muito antes, lá longe, no silêncio das carnaúbas. Depois de sossegá-lo, mainha ofereceu café e doce de leite a ele e eu prometi ajudar na busca por Napoleão, mesmo sabendo que ele jamais seria encontrado. De certo, Seu João precisará de um outro cachorro, parecido com aquele que já tinha se afeiçoado, peludo e branquinho. Anderson parecia contente, ele deve saber que em breve voltará a comer melhor. Eu também.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.