o inventário dos amores contrariados

Elder Malaquias
Revista Mormaço
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3 min readJul 14, 2022
Allie Pollock

Ainda ontem foi o início do solstício do inverno, salve melhor juízo, já é ano novo em alguma parte do mundo. Calhou que a data coincidiu com a entrada da bendita lua em câncer o que, segundo minhas amigas místicas, tende a me deixar muito mais sentimental.

Amanheci saudoso daqueles amores que não chegaram a ser amores, que não assentaram no coração a ponto de ter uma durabilidade maior que a leitura de todos os livros publicados de Gabo e ainda assim geraram aquela partilha estúpida de pequenas memórias que acabamos sempre por encontrar pelas casas.

Não me recordo de ter vivido uma paixão, um ensaio para o amor, um romance contrariado que no decorrer dos dias não tivesse em suas paradas na casa de um dos amantes, passeio de carro em traslados ou botequins com uso de bolsas para guardar miudezas, acabado por gerar um amontoado de pequenas coisas, pequenos objetos que no “fim” carecem de serem devolvidos para o outro ex-apaixonado.

Urge a necessidade de falarmos sobre aquela calcinha que acabou assentando voo na gaveta entreaberta e acabou por ficar lá, da correntinha de Nossa Senhora Aparecida ou com alguma safira tirada às pressas e que se misturou com o passar dos dias aos adereços do dono da casa, o sutiã atrás da porta marcando território, a camisa que virou pijama, o sabonete feminino no boxe do banheiro, a escova de dente dividindo um copo no armário, o livro emprestado que ainda não fora devolvido, sem falar que há sempre um fio de cabelo preso em um ramo de planta ou grudado em um terno que não se usa tanto.

Sobre livros emprestados, é de ressaltar a importância da devolução destes, de preferência sem danos. Este escritor metido a cronista vem recordar a quem ler essas linhas tortas que até mesmo Chico Buarque fez constar em sua canção a necessidade da devolução de um Neruda que lhe foi tomado e sequer lido.

Como se devolve essas pequenas coisas que acabam por incorporar à casa?

Não bastando os bens materiais de pequeno valor, temos aquelas coisas que não cabem em uma sacola bonita a ser devolvida à dona/dono, dentre eles podemos enumerar o cheiro feminino na roupa de cama que custa a sair, a imagem da pessoa despida saracoteando pela casa, o espectro deitado no tapete ou na rede lendo. Essas coisas, essas e outra imensidão de coisas são os bens mais difíceis de se fazer a partilha: como devolver para a pessoa que era dona dos seus olhos, as memórias que só foram capturadas por seus olhos?

Muito se fala dos amores que deram certos, até mesmo daqueles que morreram (vide o obituário dos amores vividos), mas pouco se fala sobre o inventário dos amores contrariados, mas exatamente aqueles amores que acabam sem acabar, já que só foram um grande ensaio, sabe? Querido leitor, eu, você e tantas outras pessoas com toda certeza possuem histórias de amores que não deram certo, que não chegaram a virar amor. Desses ensaios de quase amor, dessas paixões alucinantes que duram por vezes até anos para no fim não dar em nada ou em muitas outras coisas… tipo terapia.

É certo não haver modo correto de terminar tudo, tendo em vista que toda partida tende a compreender uma determinada quantidade de tristeza. Mas é certo que parte do que parte fica, e, mesmo que se devolva a correntinha esquecida, a roupa íntima perdida, o sabonete e a escova; ainda que se aspire a casa para tirar os fios de cabelo, troque roupas de cama e se esqueça das questões poéticas, basta um sorriso de canto ou um olhar de soslaio em um encontro inesperado e fraterno para a memória trazer todo esse inventário de coisas vividas dentro de um amor contrariado para se sorrir com saudade pelas coisas que não deram certo e seguir adiante.

O miúdo do amor, ou do quase amor, meus amigos, também é imenso.

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Elder Malaquias
Revista Mormaço

Escrevedor. Autor do Romance “Sob o Signo de Helena” disponível na Amazon| Instagram: @eldermalaquias