O invisível que (não) salta ao olhos

Thaíla
Revista Mormaço
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4 min readNov 1, 2022
The Backroom Project

— Alô?
— Oi, preciso que volte pra agência. O cliente novo acabou de mandar várias alterações e a gente precisa dessa merda para amanhã. Tô no caminho, quer carona?
— Não, quero morrer.

Parecia mesmo bom demais ter chegado em casa antes das 22h00, pelo menos uma vez naquela semana. Arrastada por mim mesma, voltei para o carro e de lá para o escritório, que ficava em um prédio novo daqueles com milhões de andares, tudo automatizado. O elevador não tem um botão, que é pra gente nunca esquecer quem está de fato no controle. “Cheguei primeiro. Ótimo…”.

Nunca tinha reparado como era silencioso sem todas aquelas pessoas discutindo a próxima ideia inovadora que vai mudar o mundo, parecia até um lugar civilizado. Desabei na cadeira que tinha abandonado algumas horas atrás. O computador já na tela inicial indicava que errada era eu por não estar 24h ligada.

A sala era tão hermeticamente fechada que quem estava dentro não recebia o mínimo sinal do que acontecia no exterior. Nosso bunker particular, sempre nos protegendo das distrações do mundo e impedindo a vida dali para fora. Um barulho de porta abrindo e uma corrente de ar frio se esfregou nas minhas pernas. Acontece com frequência, é a diferença de pressão que faz com o que ar se desloque. Não é assim que o vento funciona? Em questão de segundos a sala ficou completamente gelada. E quem havia entrado nunca chegou até minha mesa.

Meu queixo começou a bater tão rápido que eu nem percebi quando, nem consegui controlar. Foi tão violento que posso ter tido a impressão de trincar um dente. Fiz como que para levantar da cadeira, olhar pra trás, pedir pra diminuir o ar-condicionado, sei lá. Já não era mais possível. Não conseguia sair de perto da mesa, não conseguia levantar, não conseguia nem tirar as mãos do teclado para tentar esquentar braços e pernas.

Estava paralisada de frio. Parece rápido, porque foi rápido. De relance vi um roxo-morte começar a colorir minhas unhas. Eu sentia que me observava, vindo na minha direção, sugando todo o calor do ambiente.

Foi quando comecei a ser desmontada. Membro por membro. Como em um abatedouro, minha carne começou a ser cortada e congelada, pedaço por pedaço.

Primeiro meus dedos dos pés se soltaram das tiras da sandália e de canto de olho vi eles rolando pelo chão de cimento queimado. Depois foi a vez das mãos que estavam ainda grudadas no teclado, só que agora estavam grudadas só no teclado. Sabe quando dormimos por cima do braço e depois de um tempo parece que não há mais braço? Dessa vez não havia mesmo.

Não sei exatamente como, mas consegui ouvir o barulho de gelo se quebrando quando minhas orelhas partiram de encontro ao chão. Com os ossos corroídos pelo frio que não cedia, pouco a pouco, mas também rápido demais, todas as minhas extremidades não eram mais minhas.

Congelada até o último pensamento.

O pescoço completamente rígido não sustentou por muito tempo e pendeu para trás. E só aí, quase sem cabeça, já completamente inumana, que eu pude contemplar aquilo que era uma ideia de corpo e ao mesmo tempo um buraco vazio onde cabia todo o desespero do mundo. O que restou de mim foi arrastado pela sala vazia, deixando um rastro de água derretida.

Fui atirada contra a parede com tanta força, que meu (quase) corpo, vestindo aquela mortalha de gelo, se despedaçou em mais de mil e parei de sentir frio.

Parei de sentir qualquer coisa.

De alguma forma, ainda estou aqui.

Estava aqui quando meu colega chegou meio esbaforido pedindo desculpa pelo atraso, pneu do carro furou. Eu já tinha derretido por completo à essa altura, restando pontuais poças d’água que poderiam muito bem ser goteira, vazamento, infiltração. Poderiam ser qualquer coisa, menos eu. Minha mochila em cima da mesa, e só. Sem vestígio de mim. Desaparecida.

Estava aqui quando a polícia interrogou uma ou outra pessoa, tentando juntar as peças para me encontrar.

Estava aqui quando a agência recebeu um investimento milionário e decidiram mudar a sede para São Paulo.

Estava aqui quando os funcionários da empresa de mudança chegaram e começaram a desmontar todo o escritório.

Estou aqui agora, observando a vida que costumava ser minha sendo vivida por outra pessoa. Basta olhar distraído para a tela preta de qualquer monitor desligado. Aquela sombra ali no canto, sou eu.

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.