O jantar

Céu Passos
Revista Mormaço
Published in
3 min readDec 15, 2023
Colagem da autora.

Toda terça-feira o casal recebe alguns amigos para uma pequena celebração ou, como gostam de dizer, un petit comité. Contudo, naquela noite, o jantar será apenas para uma pessoa. Ela quer aproveitar a folga antecipada para cuidar do marido.

Por isso, sai de casa ainda com o sol dormindo e segue em direção à feira livre, a poucas quadras do seu apartamento. Na banca de legumes, apalpa os tomates com muito cuidado e escolhe os mais maduros. Quer um cardápio simples para a ocasião. Talvez uma massa ou risoto.

Assim que chega em casa, guarda as compras e vai ao quarto do casal fazer os curativos no marido, que ainda não despertou da anestesia. Tranquila, tira o resto da manhã para dar uma arrumada na casa e cuidar de si. Retira o esmalte antigo das unhas, lava os cabelos, esfolia o corpo e o rosto. Gosta dessa sensação de cuidado e zelo consigo mesma que esses pequenos prazeres lhe proporciona.

No final da tarde, após um leve almoço e sesta, veste o avental, prende os cabelos com uma flor vermelha e pisca para o espelho depois de passar o batom. Põe para tocar suas músicas preferidas e deixa um Pinot Noir descansando na taça.

Sem pressa, lava os tomates na pia, faz um preciso corte em cruz em cada um e coloca em água fervente por exatos dois minutos. Retira as peles com delicadeza, as sementes e, depois de picados, refoga com azeite, alho e cebola. Acerta o sal e a pimenta. Reserva o manjericão para finalizar o prato. Abre a geladeira e pega as duas porções que reservou.

Para ela, a paixão e a cozinha têm um quê de violência, quase imperceptível. O uso das facas afiadas, os cortes precisos e o fogo que tudo transforma. Suas escolhas na vida sempre foram apaixonadas, assim foi com o casamento e a medicina. Para ela as paixões não se explicam, se vivem. E, tanto na vida profissional quanto na vida sentimental, ela exige perfeição e dedicação. Por isso, está empenhada, preparando o jantar. Quer dar uma prova de sua dedicação.

Depois de cozido, o macarrão é incorporado ao molho rubro, denso e aromático. Uma chuva fina e verde repousa sobre a massa. Ela morde os lábios, satisfeita, o prato está perfeito. Retira o avental, ajeita a flor no cabelo e completa a taça.

Com jantar empratado na mão esquerda e o vinho tinto na outra, ela se dirige ao quarto do casal. Na cama, o marido, ainda entorpecido pelos medicamentos pós-cirúrgicos, lembra da discussão que tiveram sobre infidelidade. Ela sempre deixou claro que o menor deslize traria consequências muito graves para o relacionamento.

Nunca chegaram a um acordo sobre essa questão. Mas agora, em pânico, ele acredita que seu pior pesadelo virou realidade. Sente uma ardência entre as pernas ao ver na bandeja, o belo prato de macarrão com testículos fatiados sob manjericão fresco. Pendurado no dedo da esposa, o sutiã vermelho, da amante.

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Céu Passos
Revista Mormaço

Sou nortista de Belém do Pará e encontrei na literatura a possibilidade de contar minhas histórias e das personagens que me cercam.