O jogo do pega
Saiu de casa deixando para trás a mobília
deslocada
as caixas remexidas
a mudança foi ontem e não houve tempo
de dar lugar às coisas
antes do primeiro passo dentro da estação de metrô
notou que havia esquecido
da coisa
em cima do móvel
fez retorno para casa
virou a chave e entrou
ainda tímida, como se fosse visita
botou a mão adiante
pra alcançar a coisa esquecida
quando o nariz avançou o tato
estendeu o olfato ao espaço todo:
um cheiro sólido de ovo podre
na cozinha nada havia sido preparado
nem café feito
não tinha comprado do supermercado
mas o cheiro vinha forte da pia
aproximou-se para olhar e o olfato a levou até o fogão
já fugindo para o sofá da sala
o ovo podre a levou pela casa
cínico brincando de poder
o poder da criança que corre no jogo de pegar
ela, o bobo
correu até a cama e revirou os lençóis
mas quando viu
o cheiro já foi para os livros no corredor
quem persegue cheiro de ovo podre
odor natimorto que sabe só afastar?
pensava enquanto revirava uma mala de roupas
quase conseguindo tocar o cheiro
numa náusea o estômago a puxou para o banheiro
e notou o cheiro mudando de rota
o pegou no meio do plano para despistá-la
agarrou o cheiro com toda força
abraçou
entrelaçou os dedos em volta do cheiro
firmou os pés no chão
e prendeu o cheiro contra a parede
ficou ali a manhã inteira, agarrada ao podre
sem saber como soltar, impregnou o cheiro, o preencheu com seus cabelos, roupas, seu perfume doce
invadiu o podre com a pele
Encheu o cheiro de si