o paraíso é dos outros

Laize Ricarte
Revista Mormaço
Published in
3 min readApr 8, 2021
Fotografia de Nan Goldin, 1980.

ela estava sempre preocupada com o que as pessoas pensavam. estava sempre rodeada por amizades frágeis. acreditava que, deixando que fizessem o que bem entendessem dela, seria amada e que, sendo amada, estaria completa. isso nunca lhe garantiu amor, muito pelo contrário: lhe garantiu desprezo e indiferença. ela não entendia porque ao fazer de tudo para ser a pessoa perfeita para os outros, acabava sempre sozinha e incompleta.

seu último relacionamento acabou assim. ouviu que era perfeita, mas que não havia paixão ali. talvez fosse perfeita demais, e a paixão nasce no imperfeito, no esquisito e no verdadeiro. no dia seguinte, acordou com um certo mal estar que pensava ser nada além do costumeiro coração partido. mas ele não passava, sentia o ar fugindo de seu corpo. descobriu uma ferida aberta debaixo do peito e ao tentar tocar, sentiu um sopro suave saindo do corte. seu peito aliviava.

seu corpo murchava, como uma bexiga no fim de uma festa de aniversário. enquanto sentia o ar sair de seu corpo, desejou que alguma criança traquina pisasse nela enquanto ainda estava cheia, causando um estouro ao desaparecer. mas isso chamaria atenção, incomodaria. talvez fosse melhor, mais cômodo, desaparecer aos poucos, até murchar completamente, esquecida debaixo da mesa de doces.

sentia que seu corpo só diminuía, sem fazer barulho algum. pensou em pedir ajuda a alguém para levá-la ao hospital, mas não queria atrapalhar. foi sozinha, o que causou estranheza às enfermeiras. o médico pediu para que respirasse, perguntou se havia sangrado em algum momento, ela disse que não. fascinado, ele pediu que ela respirasse de novo. chamou alguns colegas, todos tiveram reações abismadas. nunca haviam visto nada parecido. ele lhe sugeriu que ela ficasse em observação.

passou os dias murchando em uma maca de hospital. os funcionários se revezavam em observá-la, não por cuidado mas por mera curiosidade e fascínio. ela não gostava de ser o centro das atenções, os olhares de deslumbramento lhe incomodavam tanto quanto os de pavor.

a velhinha que estava sempre dormindo com quem dividia o quarto faleceu. ela não sentiu nada e, por isso, chorou. uma menina entrou no seu lugar, era mais nova mas parecia cansada e com pouco tempo pela frente. seu pulmão estava bastante comprometido, mas as duas conversavam mesmo assim, dentre várias pausas para pegar o ar e para não deixá-lo sair.

a menina pediu que os funcionários parassem de visitar o quarto como se fosse um zoológico e eles a obedeceram. “ninguém contesta uma menina perto da morte. você deveria tentar.”.

ninguém sabia o que fazer com a tal ferida. tentaram fechar, mas ela abria de novo. se cobrissem com algo, a coisa saía do lugar. os médicos acabaram desistindo e deixando-a ali, esquecida. a menina recebia visitas que lhe contavam coisas do mundo lá fora, ela ria com esforço.

um dia, as duas estavam sozinhas e conversavam sobre algo bobo que passava na TV. ela levantou para ir ao banheiro e a menina lhe disse “vem cá. aproveita que ainda consegue andar e que eu ainda respiro.” ela chegou até a cabeceira. a menina abriu a bata para ver a ferida de perto, sorriu. “é mais bonita do que eu esperava” fechou os olhos, o sopro começou a sair mais forte, tirando do lugar seus poucos cabelos.

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