O projeto

nilo nobre
Revista Mormaço
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6 min readSep 2, 2024
Colagem feita a partir de imagens gratuitas obtidas em freepik.com

Após vinte e cinco anos trabalhando em seu projeto mais ambicioso, o professor Roberval o havia terminado. Ele saiu correndo para a sala dos professores. Todos na universidade o achavam estranho. Era uma pessoa muito reservada e reclusa. Ninguém sabia se tinha família ou amigos. Não era de conversar muito, nem ficava pelos corredores. Os alunos chegaram a fazer piadinhas chamando-o de Robôrval, devido à sua rotina rígida de passar direto para sua sala e ficar lá até o horário de ir embora. Outros colegas tinham inveja, nem sequer sabiam no que ele estava trabalhando, mas como nunca dava aula, acabou ganhando um certo status de queridinho da coordenadora. E mais estranho ainda era vê-lo correndo daquele jeito pelo campus. Mas como ele nunca revidava, os alunos e colegas professores se achavam no direito de verbalizar o que queriam.

— Olha, esse modelo tem equilíbrio!

— Tá correndo pros braços da coordenadora?

— Hoje a seca tá grande, hein?

Mas Roberval não se importava. Não naquele dia. Havia atingido seu objetivo e nada era mais importante que aquilo. Nunca mais teria que ouvir aquelas baboseiras.

A porta se abriu de supetão.

— Terminei! Finalmente terminei!

Todos ficaram surpresos quando ele invadiu a reunião do colegiado. Seu rosto se iluminava com genuína alegria nos olhos. Os colegas ficaram em silêncio sem saber como reagir, indecisos entre a alegria contagiante do colega e a esquisitice de um “Robôrval” tão extrovertido. Apenas Elisabete, a coordenadora do programa, não se abalou. Ela era o mais próximo de um amigo que Roberval tinha, mesmo que nunca fossem vistos juntos em nenhuma ocasião social. A única coisa que se sabia era que a coordenadora conhecia o projeto de Roberval e estava bastante ansiosa com os resultados, inclusive indo atrás de financiamento. Muito mais financiamento do que qualquer outro projeto de pesquisa, o que aumentava o desgosto de alguns em relação ao queridinho.

— Então vamos ficando por aqui — disse Elisabete, com um sorriso de satisfação. — Acabo de descobrir que tenho um compromisso urgente.

— Eu sei qual o compromisso — falou um professor com malícia.

— Mas professora, ainda precisamos discutir o calendário letivo do próximo semestre — falou o secretário da pós-graduação.

— Podem discutir sem mim, eu assino embaixo do que decidirem. Agora, se me derem licença.

Os dois saíram da sala sob protestos e piadinhas dos colegas que ficaram, mas isso não os atingia.

Havia dias em que Elisabete tinha vontade de socar cada um daqueles otários que tinha como colegas. Era pesquisadora nível A, coordenadora do curso, responsável por conseguir financiamento para todos, mas nunca parecia suficiente para ser respeitada. Havia sempre um tom de deboche, uma tentativa de rebaixamento, como se os “esclarecidos” estivessem tentando ensinar coisas para uma criança. Como o currículo não podia ser atacado, surgiam piadinhas sobre como se vestia, ou que não era simpática o suficiente, como se todo mundo tivesse a obrigação de sorrir o tempo todo. Aquilo a tirava do sério. Além disso, começou a circular um boato de que ela tinha um caso com Roberval. Não que não fosse verdade, mas era impressionante como qualquer proximidade dela com alguém despertava esse tipo de suspeita. Estava cercada de juízes prontos para condenar sua conduta. Por isso o projeto secreto de Roberval parecia tão atrativo. E ela estava muito curiosa sobre o que estava acontecendo.

— Você concluiu até mesmo o estágio 2?

— Tudinho!

— E tem certeza de que é operacional?

— É até melhor do que você espera. — Roberval não conseguia se conter de alegria.

Em pouco tempo de caminhada pelos corredores, os dois chegaram na sala de Roberval. Elisabete ainda podia ouvir o burburinho lá fora e já podia até imaginar as especulações que faziam, de todas as formas o que estava ali dentro reescreveria a história para sempre.

Avançaram pela sala por entre mesas cheias de chaves de fenda, chaves de boca, alicates de todos os tipos e peças que deixavam o lugar mais com cara de galpão de mecânica do que de sala universitária. No final do cômodo, havia uma máquina. Uma geringonça pouco maior que um banheiro químico, cheia de cabos e tubos e com duas cadeiras rudimentares diante de um painel com alguns botões e telas.

— Tem certeza de que ela vai sair do canto?

— A sobreposição quântica funciona.

— Então me explica.

— Tá tudo no manual aí, em cima da mesa.

— Você pode me explicar muito mais rápido.

Então ele a chamou para mostrar os controles. Havia quatro painéis com botões para inserir números e uma alavanca, que ela supôs que deveria ser para dar partida e iniciar a viagem.

— E o que são esses painéis?

— Mostradores das coordenadas para o destino final.

— Esta é pra latitude? E esta pra longitude?

— Sim e não. Essas coordenadas geográficas são referentes apenas ao planeta Terra. O que precisei fazer antes de construir a máquina foi desenvolver uma notação de coordenadas espaciais tomando o sol como ponto zero. Então, sim, funciona de forma parecida, mas não é igual, pois mesmo o sol não é um ponto fixo, então as coordenadas são sempre relativas.

— Certo, então temos eixo x, eixo y, eixo z e… não me diga que essa aqui é…

— Eu falei que era melhor do que você imaginava. Essa aí é da quarta dimensão.

Elisabete caiu sentada em uma cadeira próxima.

— Eu não acredito em você! Quer dizer que podemos conhecer o futuro? Ou voltar ao passado? Dá pra corrigir algum erro na vida?

Roberval colocava alguns pacotes na máquina.

— Sim e não. Podemos viajar no tempo mas estaríamos sempre na imprecisão quântica da caixa de Schröedinger enquanto ela está fechada. A teoria do multiverso diz que para cada escolha que fazemos, uma dimensão paralela surge com a escolha oposta. Então, a realidade em que você não cometeu o erro existe, mas em outro plano. Para acessá-la deveríamos utilizar um transporte interdimensional e não uma máquina do tempo. Esta máquina aqui só leva para as coordenadas especificadas deste universo.

Elisabete passou uns instantes olhando para a máquina e para Roberval. Era fascinante. Havia tantas coisas que ela odiava na universidade, pelo menos com Roberval as coisas eram mais simples. Sabia que ele tinha fobia social, que detestava estar no meio das pessoas se esforçando para criar laços irrelevantes. Percebeu que, por algum motivo, queria cuidar dele. Depois de muito esforço, conseguiu se aproximar.

Quando soube que ele pensava em desenvolver um método revolucionário de viagem, começou a incentivar e apoiar. Aproveitou-se de que ninguém queria a cadeira da coordenação e assumiu o cargo. Quando o financiamento começou a entrar, Roberval passou a reagir melhor à sua proximidade. Talvez estivesse apaixonada, mas a fobia dele não permitia muito contato. Ela pensou que trabalharia isso num futuro, então exigiu que a levasse junto, ou não conseguiria mais financiamento. Mesmo contrariado, ele acabou aceitando.

Então, o aguardado momento havia chegado.

— Tá pronta?

— Há muito tempo!

Ela entrou e sentou-se próximo a ele.

— Pegou as projeções climatológicas que pedi?

— Claro! Eu não tinha entendido antes, mas agora faz sentido. Uns cinco mil devem bastar.

Roberval inseriu as instruções e a máquina calculou a rota. Ele conferiu os cálculos. Não queria correr o risco de aparecer na posição do sol a cinco mil anos no futuro, nem no núcleo de algum planeta. Tinha que ser preciso. Conferiu a projeção mais algumas vezes e quando se deu por satisfeito, puxou a alavanca. A máquina começou a vibrar, estalou e desapareceu.

***

A escuridão do ambiente os surpreendeu por um momento. Demoraram alguns instantes para perceberem que estavam em uma praia. Elisabete abriu a portinhola e saiu. O vento marítimo ondulava seus cabelos. Dentro da máquina, Roberval permanecia atônito e quieto. Ela o puxou para fora.

— Vem logo!

Ele olhava para cima, curioso. Após confirmar as posições das estrelas, abriu um largo sorriso. Seu plano havia funcionado. Conseguiram viajar no tempo para um momento em que a humanidade já havia se auto destruído pelo colapso climático e já havia passado tempo suficiente para que a natureza se reequilibrasse para um clima mais ameno. Ali não teria que emular milhares de condutas sociais maçantes, podia ser ele mesmo, pela primeira vez na vida.

Ao seu lado, Elisabete também não conseguia se conter. Nunca mais teria que se desdobrar em três para atingir padrões sociais inalcançáveis. Sem mais exigências de beleza, de comportamento, de ter filhos, de cuidar de todo mundo. Não mais seria tratada com desdém unicamente por ser mulher, mesmo tendo se provado capaz inúmeras vezes. Podia ser ela mesma, pela primeira vez na vida.

Eram as duas únicas pessoas no planeta.

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nilo nobre
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Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.