O quarto

Jacqueline Gama
Revista Mormaço
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3 min readNov 1, 2020
Desconhecido, por Salvador Dalí

Era manhã e eu não me reconhecia. Não tinha me tornado uma barata como Gregor Samsa em seu quarto. Mas sentia esse estranhamento dentro de mim. Dois olhos. Uma boca. Um nariz. Duas orelhas, cabelos. Eu era eu e não era nada. Me olhava no espelho e me sentia estranho, me sentia no corpo de um intelectual inacabado. Me sentia uma bailarina. Me sentia médico e louco.

Eu estava me elaborando diante do espelho. Quem era eu ontem? Quem sou eu hoje? Outro, sempre outro. Mergulhado nas profundezas do inconsciente. Sem ciência, começo a tocar meu rosto diante do espelho e retocar a maquiagem.

Eu havia acabado de acordar em um quarto de motel ao lado de um homem que só vi naquela noite. Ontem eu era um. Era, o passado do que foi. Hera venosa planta. O homem me invadiu com toda a sua potência de Ferrari. Ele o cavalo. Eu cowboy.

Ele me tornou outro. Agora, ele estava dormindo. Tinha dado a minha hora. Nunca mais quero ver aquele homem na minha frente, porque ontem eu era um, hoje, sou outro. Toco nas mechas loiras do meu cabelo, pintadas de água oxigenada. Me sinto careca. Me olho com espanto e olho para dentro. Meu corpo agora está encolhido.

Me sinto planta. Um homem plantado diante do espelho que perde a noção de sua forma. Se dissolve. Em pratos, a maquiagem escorre. Estou no banheiro. Urino, tomo banho. A água tem esse poder mágico de dissolver e derreter as coisas. O passarinho refletido na parede está tão encolhido quanto eu. Não mais canta. É de manhã.

Pego a toalha. Visto a minha cueca. Passo o lápis de olho. O brilho da minha íris quase queima a minha face com o meu reflexo. Apareço. Apareço. Apareço. Me reconheço. O passarinho começa a cantar. Estou me vendo. Me reconhecendo. Sendo. Apesar da tristeza, porque me sinto sozinho.

Um homem que vive em busca de outros homens. O homem lobo de si mesmo. O homem que se autodevora. Se antropofagia constantemente no peito daqueles que o escolhe. Sou homem e gosto do cheiro da carne. O sangue que escorre, expele, espelho, esfinge.

Grito, não sou Édipo. Sou? Furaria os meus olhos se fosse possível. Seria meu castigo. Nunca mais buscaria a outra carne e nem daria a outra face. Mas não posso, não sou semideus! Sou gente, sou humano, buscando e transformando meu ser, mesmo sem saber o que sou.

Contra a estática, o mundo é gravitacional, gira. E eu parado verticalmente em frente ao espelho me observando. O meu exterior. Eu, um homem devir, disperso e despedaçado. Arranco os cílios postiços. Não sabia que eles ainda estavam colados. Visto o restante da roupa.

Sou personagem de mim mesmo. Me transformei nessa drag-queen à noite. Pronta para o show. Hoje sou apenas um homem. Um ser. Vi que ele deixou algumas notas de cem ao lado da cabeceira da cama. Escrevo um bilhete, não quero. Mais uma vez sou tratado como objeto. Pertenço a mim mesmo. Desamparada planta. Lobo solitário.

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Jacqueline Gama
Revista Mormaço

Graduanda em Letras, colaboradora da revista Mormaço, colunista do Soteroprosa.com e autora do podcast ARTE EXPRESSA.