O que restou está exposto na parede

Letícia Zampiêr
Revista Mormaço
Published in
3 min readMay 2, 2023
Fonte: AI Art Generator

Sem surpresa, a quarentena traz consigo a nostalgia. Do que foi, do que podia ter sido, do que poderia ser se não fosse. Isso me causa uma urgência, pois aprendi em análise a odiar subjuntivos. Passei para o indicativo o máximo de coisas que pude, mas algumas lembranças ainda coçam por debaixo do couro cabeludo, nas horas mais inconvenientes.

As cenas se alternam, e você aparece com mais frequência do que eu esperava. Como tudo nas últimas semanas, elas tomam uma forma nítida. Posso sentir agora mesmo o cheiro do seu perfume importado, que tentei lavar da minha blusa no banheiro da faculdade. Enquanto esfregava o papel toalha com força nas mangas, me dei conta que estava apaixonada. De novo. Dá para esfregar uma memória?

A imagem das suas costas tensas indo embora é a que mais se repete. A dureza da sua expressão confirmou a dor que imaginei ter visto no dia que nos esbarramos na rua e você quase não me cumprimentou. Às vezes a lembrança vem como uma infusão gelada na veia, que me põe tremendo de remorso. As últimas palavras ditas pendendo no ar sem resposta. Parece-me irreal que sou capaz de te machucar assim. A incredulidade põe um filtro vermelho na cena e as palavras entram em combustão. Com a fumaça emanando dos poros abertos na minha pele vermelha, amaldiçoo até sua quinta geração. O que custava dizer tchau?

Sonho com você com insistência, e acordo cansada. Na neblina entre dormir e acordar, tento fazer as cenas oníricas minimamente inteligíveis. Na minha cabeça, você raramente faz sentido. Esse é o grande problema, mesmo quando penso que você pertence ao passado, há uma interrogação que persiste. Queria que você fosse capaz de responder a essa pergunta que não sei formular.

Vez ou outra, converso contigo na minha cabeça. Conto casos e explico teorias. Te vejo visitando o escritório novo, elogiando as plantas e as cores dos móveis. Aposto que analisaria cada centímetro, procurando falhas, com um sorriso na voz. Não consigo te imaginar me lendo, e eu tentei. Pois implicaria um interesse no que é meu que não sei se já existiu.

Não falo mais de você para os meus amigos, utilizando uma estratégia herdada, na tentativa de te fazer não existir. Será que inventei tudo? Não consigo nos registrar na linguagem e isso enlouquece. Minha analista pergunta que diferença faria. Só há um único vestígio, que funciona como prova e testemunha, de que você passou na minha vida. As artes embaladas em plástico grosso, dadas num momento raro de intencionalidade. “Posso ir aí?” — seus olhos turvos, os movimentos agitados. Nunca entendi aquela meia hora. Separei cada imagem, preparei as molduras a mão, e hoje o que restou de você está exposto na minha parede. Todos que entram elogiam, a força das imagens, a beleza das palavras. Exalto o artista — “Não há lugar melhor para as ilustrações do Susano” — mas o coração pula uma batida, com a confirmação de que, sim, existimos, e a prova está à mostra para quem quiser ver.

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Letícia Zampiêr
Revista Mormaço

Psicanalista, pesquisadora e poeta. Autora de Para provar que (não) te inventei (Editora Patuá, 2024).