O sonho de Dulce

Clara Suit
Revista Mormaço
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3 min readAug 1, 2024
Photo by Denny Müller on Unsplash

O sol escaldante do meio-dia soteropolitano encharcava de suor o vestido de Dulce — o mesmo vestido amarelo e surrado que tinha no corpo quando fugira de casa, três dias atrás. Dulce caminhava pela cidade desde que os primeiros raios de luz surgiram no horizonte: desde o amanhecer, procurava por um lugar onde pudesse dormir.

Essa era a quinta vez que a pequena e invisível Dulce fugia de casa em seus 9 anos de existência. É que, de quando em quando, Dulce se sentia culpada pelos problemas do mundo — bem, do seu mundo, a pequena família que lhe coubera. A mãe trabalhava como lavadeira, esfregando dia e noite até os nós dos dedos reluzirem brancos, em carne viva. O pai saía cedo e chegava tarde, sempre cheirando a peixe podre e cachaça barata, cansado ou bêbado demais para trocar duas palavras. A avó, pela qual Dulce tinha um carinho especial, era diabética e fora vítima de uma infecção generalizada há um par de anos. Eram os dois irmãos mais velhos que levavam e traziam Dulce da escola todos os dias — a mesma que eles também deveriam frequentar, mas que faltavam repetidamente para pegar algum serviço no bairro em que moravam.

Dulce zangava e punha os pés para fora de casa, sempre com a certeza de que dessa vez seria de verdade, que não iria mais dar trabalho a ninguém. No fundo, ela também fugia para saber se alguém seguiria indo buscá-la. Sempre iam — a mãe, um dos irmãos ou o vizinho amigo da família. Era sempre vencida pela astúcia de alguém que lograva encontrar o seu esconderijo mais recente.

Já era o terceiro dia e esse era o período mais longo que conseguira passar longe de casa — o que significava que, muito em breve, a encontrariam. Sua barriga roncou com o pensamento: fome, sede, ansiedade ou tudo junto ao mesmo tempo. Sentou-se à sombra de um orelhão e enxugou as palmas das mãos no vestido. Os pés latejavam de tanto caminhar e a pele ardia como melaço queimando num caldeirão. Olhou ao redor: estava em uma das ruas antigas da Cidade Baixa, não muito longe de casa.

Foi a placa de “Vende-se”, decifrada através do sol ofuscante, que lhe chamou a atenção.

Pendurada na sacada de um sobrado de três pisos, a placa só não era mais miserável do que a própria casa: janelas quebradas, pintura desgastada, madeira carcomida; o canto superior do teto completamente caído, deixando entrar a luz, a chuva e o mato que crescia, desordenado, tomando todo o andar de cima. Era grande, imponente, de longe, a maior casa da rua e também a única abandonada, contrastando com as vizinhas que reluziam, amarelinhas e bem cuidadas, ao redor.

Dulce suspirou, cansada e cheia de sonhos por entre os ouvidos. Ninguém queria o sobrado destruído, mas aos seus olhos ele era uma mansão. Lhe lembrava vagamente de tempos há muito perdidos, daqueles que a avó costumava contar em suas histórias: tempos de vestidos inflados, bailes de música francesa e gente bonita e sorridente; que andava em carruagens puxadas por cavalos e dançava em salões iluminados por lustres de luz tão fulgurante como o sol.

Na imaginação de Dulce, aquele havia de ter sido o maior e mais lindo castelo do mundo inteiro e, por uns bons minutos, seguiu olhando, extasiada, alimentando-se de um sonho que — quem sabe em outro tempo — poderia ser seu.

Levantou-se e foi em direção ao sobrado. Já ansiava pelo momento em que a mãe a encontraria e arrancaria daquelas ideias impossíveis, com a voz doce com que sempre a recebia: vamos, Dulcinha, vamos para casa.

Casa. Casa bem que podia ser aqui, né, mãezinha?

Deitada à sombra do casebre abandonado, Dulce afundou o rosto nas dobras dos cotovelos e dormiu, embalada pelo sonho de um mundo só seu.

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Clara Suit
Revista Mormaço

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando.