O SONHO DE UM HOMEM QUE SENTE FALTA

Matheus Peleteiro
Revista Mormaço
Published in
3 min readMar 12, 2021
A Persistência da Memória — Salvador Dalí

Não sou capaz de precisar em que data aconteceu, mas posso dizer que foi duro quando, pela primeira vez, percebi que um sonho contínuo, o qual vivenciara diversas vezes desde a minha infância, era somente um sonho, uma fantasia irreal no que tange ao concreto.

Como num sonho dentro de um sonho, lembro que, sempre que me aborrecia, independentemente das razões que motivassem tal aborrecimento, corria para aquela trilha atrás da minha casa, passava pelo areal, e dava de cara com um paraíso solitário e deserto, onde tudo que havia em meu interior se regenerava. Isto se repetira diversas vezes durante todos os meus mais de vinte anos. No entanto, agora, num momento em que decidi ir lá novamente — desta vez, na vida real — , me deparei com o fim de uma fantasia que costumava se reproduzir em loops.

Era um caminho longo. Tinha a impressão de que a travessia durava cerca de uma hora e pouquinho, porém, me recordo de que caminhava sem jamais me cansar. No caminho, traficantes e contrabandistas fugiam, sempre alertas e de olhos abertos, ao mesmo tempo que bandidos dos mais variados tipos se escondiam atrás das moitas. Devo mencionar que não havia polícia ou qualquer espécie de ameaça para eles. Escondiam-se de si próprios. Talvez por isso eu andasse com a mais perfeita calma. Pensava que quem se esconde não quer ser encontrado e, quem não quer ser encontrado certamente não perderia o seu tempo me procurando.

Assim seguia, almejando tanto tal paraíso que o caminho se tornava uma mera ponte necessária. Aliás, durante muito tempo, carreguei comigo a impressão de que esta sempre fora uma estrada comum ao meu dia a dia, para um local onde, de forma reiterada, tivera que revisitar no decorrer dos anos.

No entanto, agora, quando tudo o que divaguei caiu por terra, me dói não conseguir descrever perfeitamente como era aquele lugar pelo qual cultivo imagens tão aparentemente recentes e sólidas em minha mente. Contudo, certas características são impossíveis de se esquecer. Havia aquele mar azul bem forte, cobalto cristalino, e um deserto imenso para todos os lados, com montes de areias tão brancos quanto folhas de papel ofício. Em meio a isso, talvez umas três pessoas debaixo de guarda-sóis em diferentes extremos do lugar. Os ventos eram tão fortes que balançavam os mares, o sol e o mundo, mas, de alguma maneira, não incomodavam. Pelo contrário: traziam uma paz de espírito que revigoraria o mais exausto maratonista.

Então, aflito, rememorando toda a realidade que havia em minha quimera, consigo enxergar que aquelas pessoas que se esbarravam em mim no caminho eram apenas um reflexo do meu medo, a tentar me mostrar que, somente acompanhado da solidão ou ao lado de entes queridos e próximos — os quais, vez ou outra, foram até lá me fazer companhia — , poderia, enfim, me sentir em paz.

É bastante doloroso e curioso perceber que aquilo que durante tantos anos pareceu existir jamais fora real. Porém, taciturno e devaneante, ainda consigo enxergar aquele lugar em minha mente, como uma miragem do que um dia existiu: o céu vermelho num eterno pôr do sol, as gaivotas voando em sincronia com a maré, o mar invadindo a areia como um tsunami que não gera estragos, e um clima de serenidade extrema exalado pelo barulho do silêncio.

Jamais tivera uma memória tão sólida de um sonho e, agora, sob lágrimas de saudades, a vida me remete a ele, como aquele que um dia já existiu, mas, assim como tantas coisas na vida, fora reduzido a lembranças pelo peso da realidade.

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