OS MENINOS, O GUEPARDO E AS RIPAS

Beatriz Trimer
Revista Mormaço
Published in
5 min readAug 1, 2023
Foto: Beatriz Trimer

PARTE 1: T

Eles estavam na estrada. Muitos carros, horário de pico. A rodovia de mão simples tinha, nas encostas, árvores de troncos grossos e folhas miúdas e alaranjadas. As luzes sobre os carros também tinham a mesma tonalidade laranja, típicas de fim de tarde. Haviam pego V na escola. Ou universidade. Não lembra. T dirigia e V vinha atrás. Reclamava no trânsito. A voz era fina e irritante. Aos ouvidos de T, talvez por hábito, pareciam apenas sussurros mudos de algo qualquer. V berrou palavras surdas, debruçando seu corpo para frente e apontando algo. T virou na primeira à esquerda e olhou para o carona. R tinha pele escura e cabelos raspados, olhou-o com um sorriso malicioso e falou algo em tom mudo, que só ressoou na cabeça do motorista. Ele parou o carro. V saltou e começou a andar em direção da estrada. T foi atrás e R pulou para seu lugar. R disse, mais uma vez, em voz muda, que tudo ficaria bem. T foi atrás de V, cujos cabelos dourados, na altura dos ombros, estavam enterrados em uma touca de crochê roxa, seu casaco era de marrom claro e nas mãos encapuzadas com luvas da mesma tonalidade da touca. V seguia outros dois: outro menino e outra menina; Z e G. Z tinha cabelos de cor igual aos dela, mais compridos, usava blusa rosa claro, touca e luvas roxas, iguais de B. G usava uma jaqueta azul marinho, calças jeans, touca preta e cinza e mãos enfiadas no bolso. Os dois subiram um morro, logo abaixo do pavilhão, e agacharam-se em frente a pilastra de concreto. V perguntou-lhes o que faziam. T quis impedir, mas logo viu Z olhando para ele com um sorriso igual ao do carona. G disse: vamos entrar em um foguete, tem um foguete abandonado nesta pilastra. Enquanto falava, tirou as mãos encapuzadas em luvas pretas, segurando uma chave de fenda na direita e uma chave catraca na esquerda. G abriu uma espécie de tampa de esgoto fixada na parede. Z disse que só precisavam escorregar e sumiu no buraco escuro. Na porta do buraco seu casaco, luvas e touca estavam ao chão, devidamente dobradas. T olhou para aquilo espantado. V disse-lhe, de forma muda, algo indistinguível e também sumiu na escuridão. G, então, perguntou se ele não vinha. Respondeu que ficaria olhando as roupas e a porta. A última coisa que viu dele foram suas roupas dobradas.

PARTE 2: V

V ficou assustada quando entrou no buraco escuro. Terminou em uma pequena sala, com lareira de ferro, mesa e duas cadeiras. Z estava limpando suas vestes cheias de poeira. Eram iluminadas apenas pela luz opaca do celular que Z havia acendido. G entrou logo em seguida. Ele e Z começaram a falar algo e B desviou a atenção para o cômodo. Estava em um foguete abandonado. Tem décadas que ele está aqui, disse G. V, um pouco surpresa, pegou, no bolso, seu telefone e verificou o que havia do outro lado da porta de ferro, à sua direita. Ascendeu a lanterna e apontou diretamente para um banheiro sujo, depois percorreu a luz pelo chão, mostrando a camada grossa de poeira. Em seguida a cama pequena e estreita de ferro e em cima um velho. Assustou com a figura branca e estranha sentada na cama olhando vazio em sua direção. Deu um passo atrás e avisou os outros: tem um fantasma aqui. Céticos, eles formam ver o que acontecia. Ela mostrou o velho, olhando-os, com os olhos totalmente brancos. V suou frio. Z levou a mão para o interruptor e ascendeu a lâmpada do cômodo. O olho do velho continuava branco. Z apagou de novo. Ascendeu e ficaram verdes. Apagou e ascendeu de novo. Estavam pretos. Mais uma vez e eram castanhos. O que vocês fazem aqui?, perguntou o velho.

PARTE 3: R

R estacionou em um pequeno pavimento de concreto. Haviam outros dois além do seu, um corolla e uma brasília. Ele ficou bem ao centro, os dois virados para o muro e ele virado para a rua. Os motoristas o olharam e nada disseram. Um deles, homem gordo que usava blusa amarela, fumava encostado no muro. O outro estava conversando com mais dois que apareceram de relance. No fundo, logo depois de uma escada de metal vermelha tinha uma pequena porta aberta. De dentro gritos estridentes de uma multidão nada uníssona. Ele entrou. Como havia lhe dito, haviam várias camas, compridas, de aproximadamente vinte metros cada, estendidas em fileiras. Havia uma única cama, metade do tamanho das outras, em frente a todas. Muitas pessoas acima sem qualquer ordem. Uns conversavam. Outros dormiam. Outros liam. Achou bem ao centro um espaço. Deitou-se e tirou da cabeça o boné. Colocou no rosto e fechou os olhos. Foi acordado com uma gritaria. Desvelou seus olhos e viu as pessoas a sua frente contorcendo-se, como a evitar algo que vinha de cima. A mulher aos seus pés deu um berro e ele olhou para cima. Apoiado na parede, de forma que boa parte do seu corpo ficava suspensa acima de R, um guepardo sorria. Mostrava os dentes e contorcia o rosto. Percebeu que era afetuoso. Conhecia-o. O bicho foi retirado de forma violenta da sua frente e as pessoas levaram ele para a cama central. R foi atrás e deitou na cama central, tão rápido que os outros não perceberam que colocaram o animal em cima da sua barriga. O animal miou e olhou para cima. Saltando como se fosse agarrar nas ripas de metal do teto. R gritou, chamou o gato, pegou-o no colo e saiu pela porta. Corria com a multidão em suas costas e o animal assustado nos braços. Entraram na estrada com as encostas de árvores com troncos grossos, folhas miúdas e alaranjadas. O céu era vermelho. O guepardo falou.

PARTE 4: O VELHO

O menino não era mais menino. R tinha certeza ao olhar a figura completamente afeminada que o carregava. Chegaram em uma casa, sem paredes e com ripas de metal, como as do teto que tentara agarrar. R foi posto no chão e encarado nos olhos. Reconheceu a criatura. Um velho de cabeça branca e vestes azuis disse que a ajudaria. R olhou a sua volta. E a criatura que o carregava postou-se a lamber-se. Foi interrompido pelo fogo que emergia em todos os lados. As ripas queimavam.

*a Revista Mormaço é uma publicação independente, coletiva e voluntária da Mormaço Editorial. você pode nos apoiar dando palminhas nos textos e compartilhando-os. nos encontre nas redes sociais com o @mormacoeditorial.

--

--

Beatriz Trimer
Revista Mormaço

O orvalho se tece nas quintas-feiras. Na sexta faço croche. Viajo em ideias na segunda. A adubação nas quartas. Escrevo nos intervalos