para confessar que estou perdida

danna dantas
Revista Mormaço
Published in
2 min readOct 3, 2022
Ilustração de Wellington Cardoso (@wltiiii)

a respeito de todas as coisas que esqueci dentro de livros porque não tinha marca-páginas
o que tenho a dizer é: eis aí a prova de que eu pretendia voltar.
não pude deixar outros rastros
porque não tenho coordenação motora pra usar marca-textos
então finjo que isso tudo é zelo.

invento histórias sobre devoção

como se soubesse que é preciso guardar tudo na memória pra contar pra deus quando morrer
reviso cada pedacinho de história
construo
uma narrativa
que acolhe minhas queixas
tão simples de decorar que caso me questionem
me encontrarão com uma vida na ponta da língua
de pé na ponta da ilha que a cada dia me torno.

prometo assimilar as décadas

depois disso, minha atitude mais egocêntrica é acreditar que vou ver o fim com lucidez.
você vai me deixar partir quando eu adoecer de esquecimento?
tenho esperança de que serei achada por bons ouvintes de memórias falsas
por favor não me prometa nada
essa é uma ponta de faca
que tenho muito medo de esmurrar

tenho as marcas nos joelhos de quem se apoia neles para, com esforço, confessar algo sem engasgar
não sei quando aprendi a ter cuidado com os dentes
ao mesmo tempo entendi que pra isso não posso ter cuidado com a garganta
finjo que todas essas coisas
dizem respeito ao mesmo tipo de zelo

um dia quero voltar e fazer uma ponta em um filme
algum divertido de ser feito
algum que não me faça pensar
que se eu sair feia eu vou me matar

é assim que as pessoas me veem?
se for, não quero que se lembrem

ando tentando memorizar todas as minhas rugas
pra saber contar o lugar de onde vieram
e como eu era antes delas
e como eu era antes
de franzir a testa
pensando pensando pensando
em que momento dessa história eu me desarmei.

em alguma folha de algum caderno, anotei títulos de canções que são sim felizes
mas que pelo nome você não adivinharia
são as melodias que me tocam na cabeça enquanto corto as unhas das mãos querendo não te machucar.

memorizei a página
e mesmo assim continuei marcando-a com a ponta do dedo
como quem encontra uma ilha em um mapa
eis aí o caminho por onde voltar

esqueço o receio

juro que não faço ideia
de onde veio
essa ruga
e essa completa falta de zelo.

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danna dantas
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nascer no interior me levou a escrever sobre os lados de dentro