pela volta das lâmpadas incandescentes

Maria Luiza Machado
Revista Mormaço
Published in
2 min readOct 6, 2020
Dmitry Bayer

já é escuro e esqueci
que no fim do corredor tem uma mesa
com a quina toda virada pra onde é passagem;
ainda não achei melhor lugar
pra colocar esse pedaço de madeira velha.

mas que bom
que nas últimas vezes
as crises têm acontecido nesses horários,
já sem luz.

sair do quarto num dia quente
e me deparar com as cortinas
que ainda não existem penduradas nas janelas
seria como ser engolida
por lâmpadas fluorescentes.

eu já fui engolida por algumas,
que me mastigaram e cuspiram de volta.

não foi uma boa experiência
- acredito que nem para elas.
devo ter um gosto muito ruim.

nem me importo mais com a dor
do pé da barriga por causa da quina.

o bom é que ela é aguda,
que nem me disseram que é uma apendicite,
e faz com que eu me distraia até chegar
ao armário de remédios.

de todas as decisões que tomei
para a mudança dessa casa,
a mais inteligente
foi projetar o tal armário
do tamanho que eu tenho direito.

eu preferia estar tendo uma crise de apendicite.

ainda não decorei o formato
de todos os comprimidos,
só mesmo o do Sumax.

a vontade é de engolir logo uns três,
mas tem tanto comprimido aqui dentro
que é impossível de achar.

não quero acender as luzes.

não sei quem inventou
de tirar do mercado
as lâmpadas incandescentes.
elas pareciam me engolir
com mais gentiliza,
às vezes nem chegavam tão perto
se eu ficasse quieta
com o os olhos bem fechados.

deslizando a mão pela parede,
era um alívio que fosse fria
e o interruptor ainda estivesse longe.

achei.

a lâmpada
acendeu.

fui engolida.

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