Poesia ao Lago Aruá

Oliveira dos Santos
Revista Mormaço
Published in
3 min readApr 1, 2024
“O Sol”, 1911, Edvard Munch

“Gelou o Tempo. Nasceu o Sol.”

I.

O Vento despede das árvores um arrepio selvagem.

O Lago recita nas pedras de um mundo silencioso e úmido,
Que permaneceria oculto, não fosse a insistência da Água.

Onde pousam os pássaros,
Se o ninho de ontem
Perdeu-se no caminho de outro tempo?
Saberá, o companheiro alado,
Reconhecer o lar que lhe herdou o agora?

Diante de tanto espanto a consciência se alvoroça…
E treme, a asa sobre-humana,
O céu convoca o epílogo dos passos,
Despede tua carcaça e voa!
(Mas a dúvida não deixa a mente vaguear à toa…)

“Que leito profundo sustenta o instante,
O fundamento noturno para a manhã das transformações,
Para que o voo do pássaro,
Sublime e fecundo,
Se propague no amanhã, seguro e inalcançável?”
- Amanhã que foi, mas que nunca será.

Nas telhas da casa, sobem e descem os rebentos do Vento.
Brincam de escorregadeira, os espíritos da brisa.

Sopra-se o mundo. A matéria em suspensão
Se esvai dos dedos firmes, incontível fumaça,
A vida que atravessa o peito mudo e sombranceiro.

Enquanto isso, à sombra das telhas,
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤNo triunfo do instante,
Se diverte uma família no preparo do almoço;
Mas o menino do sótão permanece distante:
Bastam-lhe os pensamentos e o cheiro de mofo.

ㅤㅤㅤ Basta-nos a risada folgada,
O infinito sem bordas num momento inteiro.
Mas não fosse a pergunta, a janela embaçada,
O que seria da Vida, sem busca ou mistério?

II.

Assim vão os dias, ao Lago Aruá.
Cavalgando, vão lestes, impelem o globo;
Vão verdes, silvestres, murmúrios do ar…
Até que, maduras, no tempo do mosto,
As horas despenquem na noite da estrela
E as águas escuras revelem teu rosto.

III.

Uma estrela cadente inaugura a noite negra.
Nada lhe pedi, que não a força para aceitar o que ocorrer.
Pois, para a flecha, que importa se é dia ou densa floresta?
Basta-lhe o voo, o tempo de ser, o resto é problema do arqueiro…

Toda a tristeza do mundo é um quase.
E o que a honestidade não consegue retificar,
Perde-se, por vaidade, na cinza, nas brumas do tempo:
Nos punhos cerrados o orgulho lamenta lágrimas de pedra
(Ali haverá choro e ranger de dentes).

Toda entrega do coração é virtual,
O que não significa mentira.
Mas quer dizer, em última instância,
Que nem o nosso próprio coração é nosso,
Quem dirá transferível…

A única prova de um amor verdadeiro
É a capacidade do amante de rir de si mesmo.
Convencidos de que amar
É o fundamento inalienável
Para a empresa de estar vivo,
Triunfamos sobre os enganos da morte.
Morrer é tudo que se desvia desse caminho.

Ao perceber a eternidade do Amor,
A imortalidade da presença viva,
O Iniciado não deve temer diante do Destino,
Pois suprema é sua benevolência
E, infinita, a misericórdia aguarda
Para conduzi-lo aos jardins onde cantam os rios
(Onde a água é limpa e a Esperança, imorredoura).

Que o Tempo tenha piedade dos vivos,
Pois sua severidade fala das pedras
E, amargas, suas lições os podem ferir.

Que as preces verdadeiras pacifiquem o espírito dos mortos.
Pois, por onde quer que andem,
Os que não empreenderam o caminho do Amor
carregarão as falsas armas da contradição.
Dirige tuas preces a estes.

Tudo que cura também pode matar,
É só uma questão de dosagem.

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