Por deus, pela pátria e pela família

Elaine Araújo Brito
Revista Mormaço
Published in
4 min readFeb 1, 2023
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Rosana sai de casa no domingo para protestar pelos direitos de seus netos. Antes, olha para o espelho mais uma vez e sente-se importante.

Traja, orgulhosa, uma calça jeans larguinha, tênis confortáveis e uma camiseta verde e amarela falsificada que comprou na feirinha do centro, em outubro. No pescoço, amarrou um lenço azul para combinar — e para usar no rosto, em caso de necessidade, como alertaram no grupo.

Uma última ação antes de fechar a porta atrás de si: a foto para a rede social, posada na frente do espelho, e a legenda: “por deus, pela pátria e pela família”.

Rosana é muito religiosa. Acredita que há um complô contra os bons costumes. Participa de muitos grupos de mensagens e leu que todos os desvirtuados devem ser eliminados de uma vez por todas. Concorda. E porque concorda, fará o que for preciso para defender seus valores, pondera, sentindo-se parte de algo maior.

O ônibus espera no local combinado nas mensagens. Ela embarca e não sabe bem como foi parar ali, não conhece a maioria das pessoas, mas recebeu cem reais, um lanche reforçado e a passagem de graça. Sente-se convocada.

No trajeto, faz amigos. Junta-se ao grupo mais organizado, aquele que já sabe onde protestará primeiro. Reconhece um senhor de pele alva e cabeça branquinha, um dos mais animados. Ele costuma aparecer aos domingos, prega como convidado, fala com tanto entusiasmo que o rosto fica vermelho e as veias do pescoço saltam. Gosta do jeitão dele, tem gente assim, que fala grosso, mas no fundo é do bem. Ela imita os outros que se aproximam e batem palmas. E gritam. Levantam objetos e os fazem brandir no ar. Rosana lamenta não ter trazido objeto nenhum, então pega o lenço azul do pescoço e o sacode para cima, como uma bandeira. Sente-se anunciando a boa-nova.

Chegando ao destino todos descem do ônibus. Há vários outros no local, nem dá pra contar. O tal senhor convoca seu pelotão e segue com ele pelas ruas. O coração de Rosana bate acelerado no ritmo dos passos no chão da capital. Uma mulher ao lado dela comenta que deseja conhecer o prédio com rampa, tirar umas fotos, mandar para os amigos. Rosana sabe de qual prédio ela fala, confunde os nomes, mas já viu na televisão e o acha bonito. Decide ir para lá também.

O grupo marcha. São muitos agora. A polícia acompanha, fotografa, ri com eles. Os escolta. Está do seu lado. O poder emana do povo e ali está o povo, eles vão salvar a nação! Alguém puxa uma música, a multidão canta junto. O canto se transforma em gritos de guerra, em palavras de ordem. Há união ali. Nada os impedirá! Rosana é tomada por aquele clima, por aquela missão e ergue o punho, cerra os dentes, é ela própria quem vai salvar a nação! — a energia se concentra, deus no comando, ela se sente participante da história.

Rosana nem viu como começou mas não questiona. Os salvadores quebram vidraças, riscam paredes e atiram cadeiras pelas janelas. Unidos. Ela vai com eles, é para isso que está ali, e se reconhece fazendo o bem para o seu povo quando atira um vaso no chão, espatifando-o em mil pedaços profanos. Tudo devidamente transmitido pelas redes sociais: que todos saibam e vejam a coragem que eles têm!

De repente, um estrondo. Rosana dava pontapés numa escultura muito feia, estava quase rompendo a base, quando a fumaça invadiu o ambiente. Gritos. Correria. Algumas pessoas caem no chão, outras passam por cima. A união se desfaz. Mais fumaça. Mais barulho. Quem está vindo? Rosana perde os colegas de vista, não sabe o que fazer, não enxerga um palmo adiante.

No meio da confusão, avista o senhor, cujo nome não se lembra, aquele do jeitão, que os liderava antes, fugindo por uma vidraça quebrada. Num impulso, corre atrás dele, aos tropeços, mas os soldados cercam o prédio. Ele consegue sair, ela fica. Sente-se abandonada.

Rosana é obrigada a sentar-se no chão sujo e não entende aquela violência. Em volta, gente e bagunça. Ela repara a grande quantidade de cacos de vidro, papéis rasgados, mesas e cadeiras viradas, paredes arruinadas e um crucifixo pisoteado. Há água escorrendo do teto e fogo na entrada. Imagina o trabalho que dará para limpar tudo aquilo. Pergunta-se o que será feito com aquela gente toda. Lembra-se que esqueceu de cozinhar o feijão para a janta e que se recusa a comer o que a nora faz. Não gosta dela. O filho é um ingrato! Estala a língua. Os dois votaram no outro candidato, não enxergam que ele quer destruir o país.

Rosana é algemada. Perdeu o lenço azul, não tem com o que cobrir o rosto e baixa a cabeça. Reza para que ninguém grave essa imagem.

Embarcada num ônibus desconhecido pela segunda vez no mesmo dia, sente medo. É levada ao que parece ser um ginásio esportivo. Parte do seu grupo, o que conheceu cedinho, também está lá. Alguns esbravejam, bravateiam. Outros, choram e clamam por direitos humanos. A cada minuto, mais pessoas são trazidas. A cacofonia aumenta. Ninguém sabe dizer o que acontecerá com eles, agora que são terroristas.

Exausta, ela olha para cima, o teto é bem alto, o eco também. Nesse instante, Rosana se percebe tão pequena e se pergunta por que diabos não ficou em casa naquele domingo.

Sente-se uma vergonha.

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Elaine Araújo Brito
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Escritora. Revisora. Publisher na editora Caravana. Aquariana. Leitora compulsiva e apaixonada pelo mar. IG @elaine.escritora