Por onde entra o amor.

Izabelly Lopes
Revista Mormaço
Published in
2 min readJul 20, 2022

Envelhecer é receber sempre o primeiro pedaço de bolo de todos os aniversários da família. Domingo é o dia universal do almoço na casa de vovó para reunir filhos, netos, primos e rir das correrias da semana. Filme é pretexto pra pipoca, assim como as tardes que pedem broa, biscoito maria e bolo de rolo cheirando no forno. Café da manhã é paz matinal: quanto mais felizes estamos entre nós, mais cheia está a mesa. Ovos, pães, frios e biscoitos. Sem falar nas visitas nas casas de parentes em que “educação” significa fazer uma bela mesa posta com tudo o que tem de melhor no armário pra receber os outros de coração aberto. E educação é comer sem culpa. Nossa relação com a comida demonstra todo o nosso afeto. Não são só borboletas no estômago que entregam o que sentimos. Cresci sabendo que chá de boldo curava qualquer dor e brigadeiro animava qualquer tarde sem graça. Família, no meu sangue, é cozinha cheia, toda apertada, com crianças correndo entre as pernas, mulheres e homens dividindo o fogão e o forno e alguém se desviando pra não quebrar as louças. E muitos gatos. Amor tem cheiro de almoço cheio. Dor tem gosto doce. Ressaca é pura sobra do jantar da noite passada. Ansiedade tem gosto de absolutamente qualquer coisa (e às vezes não dá nem tempo de ter cheiro). Nossa relação com a comida é muito mais psíquica do que orgânica, muito mais do prazer do que dos nutrientes. O amor entrou no meu coração através da boca, junto com todos os alimentos que foram cozinhados com afeto. O privilégio de poder me alimentar com tanto sentimento é único e, por muito tempo, foi desperdiçado. Quando sair do ninho me fez descobrir que não é todo mundo que se relaciona como eu com um almoço farto, achei que deveria me reformular inteira pra caber nas outras mesas. Depois de muito lutar com uma compulsão alimentar, correndo na geladeira nas madrugadas e fingindo não sentir tanta alegria ao me servir, percebi que minhas vivências são totalmente ligadas aos fornos à lenha e aos bolos cheios de glúten e lactose. Minhas curvas são minhas raízes, meu paladar é a minha história. Não há o que esconder. Enquanto houver um pão pra dividir, haverá amor. E então terei tudo.

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