Porteiro Santiago — Parte I

Thaíla
Revista Mormaço
Published in
4 min readDec 1, 2022
São Paula década de 50. Fotógrafo desconhecido.

O ano era 1979, comecei a trabalhar em um prédio antigo que começou a ser construído lá nos anos 40. Poucos andares, muitas memórias. Já não tinha mais cor, restou só o cinza da poluição incrustada nos azulejos quebrados. Ninguém nem notava sua presença e talvez por isso mesmo, ainda esteja de pé após todos esses anos.

As histórias de que coisas estranhas e bizarras aconteciam por ali, há muito ultrapassaram as grades do saguão de entrada, chegando aos ouvidos dos prédios vizinhos. Ninguém mais queria comprar ou alugar, e os apartamentos começaram a ficar vazios por muito mais tempo do que seria rentável.

Comecei a trabalhar por lá como zelador. Chegava bem cedo de manhã, limpava os canteiros, o saguão de entrada e os corredores dos apartamentos, recolhia o lixo e fazia reparos gerais quando necessário. No dia seguinte, fazia a mesma coisa, essa era a minha rotina. Sobre as coisas estranhas que todo mundo falava, nada sabia, desconfiava até que era invenção das construtoras para baixar o valor dos imóveis.

Só sei que para mim, tudo começou com um sonho estranho na última noite do mês de outubro daquele ano. No meu sonho estou parado dentro da portaria deste mesmo prédio, quando o interfone toca e no painel acende a luz do apartamento 501. Atendi. “Boa noite”, a mulher do outro lado da linha se identificou e parecia muito irritada, um tanto quanto descontrolada para o meu gosto. Seu bebê tinha acordado — de novo — por causa da barulheira que o casal do andar de cima estava fazendo.

Do interfone vazavam os gritos, o choro e todo o desespero da criança que parecia, assim como a mãe, estar sofrendo muito por ter sido acordado no meio da noite. Interfonei para o 601. Uma, duas, três vezes, ninguém atendeu. Decidi, então, subir e falar pessoalmente com os moradores. Apertei a campainha e nada. Bati na porta por alguns minutos e tentei de novo a campainha.

Apareceu na porta um casal enrolado em toalhas, ainda meio molhados. “Err… boa noite, houve uma reclamação e gostaria de lembrar aos senhores a política do prédio de não fazer barulhos após às 22 horas”. Entre risos e piadinhas um com o outro, o casal pediu desculpas dizendo que isso não se repetiria. Problema resolvido. Virei em direção ao elevador. Apertei o botão e esperei, mas, pela demora, parecia estar enguiçado. “Maldito prédio antigo”. Fui de escada mesmo.

Desci o primeiro lance e ao me virar para continuar a jornada até o térreo, onde deveria estar a porta do apartamento 501, havia um buraco preto na parede. Um cheiro de queimado contaminava o local. Ali mesmo o estômago expulsou o pão com café preto que tinha comido mais cedo. Ouvi um choro que deve ter durado meio segundo, mas que de tão claro e real, ecoou na minha cabeça reafirmando a urgência de atravessar aquele portal para o inferno.

Do outro lado, os restos de uma vida. Duas na verdade. Parecia que o incêndio tinha acabado de acontecer, ou melhor, tinha acabado de ser apagado. Dava pra sentir as ondas de calor que emanavam das ruínas do apartamento. O ar estava tão seco que meu nariz começou a sangrar segundos depois de ter entrado na sala cinzenta.

Atravessando a cozinha, consegui ver o interfone fora do gancho balançando quase raspando no chão e fui em direção ao lamento que me guiava para o quartinho dos fundos. No meio das cinzas, o que sobrou de um berço e mais nada. Nem criança, nem mulher. Só o cheiro de carne humana queimada. Juntei tudo que restou de vida em mim e sai correndo sem olhar para trás. Fazendo o mesmo caminho de quando entrei, cheguei na sala e o que antes era uma cena horrenda de destruição, agora estava completamente vazia e recém reformada. Cortinas novas, chão brilhando e sofá ainda com plástico

Atravessei aquela sala mais devagar do que deveria e quando consegui chegar na porta, saí correndo pela escada. Desci todos os outros lances tropeçando em mim mesmo, sem acreditar no que tinha acabado de acontecer, mas sem perder o equilíbrio, a única coisa que importava agora era chegar na cabina.

Cheguei!

No painel do interfone estava lá piscando freneticamente a luz vermelha, indicando que alguém estava ligando do 501. Atendi mais uma vez e do outro lado só ouvi choros e gritos de desespero. Não entendia como aquilo poderia estar acontecendo. Tentei encontrar o caderninho que fica anotado os contatos de emergência do prédio, mas antes que pudesse alcançar o caderno, o painel do interfone explodiu de chamadas. Todas as luzes vermelhas se acenderam e o barulho de dez apartamentos ligando ao mesmo tempo implodiu de dentro pra fora na salinha minúscula.

Era como se o prédio todo estivesse tentando falar. A última coisa que lembro foi de ver voar em minha direção um pedaço de papel em chamas. Fui sugado para fora do sonho pelo barulho do meu próprio telefone. Eram duas horas da manhã. Desligaram antes que eu conseguisse levantar e entender o que estava acontecendo.

Na manhã seguinte cheguei cedo no trabalho, só pra encontrar a portaria vazia e completamente revirada, no chão um jornal chamuscado com a manchete:

Sexta-feira, 31 de outubro de 1949

Um incêndio criminoso: Em ato de loucura e desespero mãe mata a si e a filha de 2 anos dentro de casa em edifício no centro da cidade.

Logo ficamos sabendo que naquela mesma madrugada, por volta das 2 hora da manhã, o porteiro abandonou o seu posto e foi pra casa. Lá ateou fogo em sua esposa e filho enquanto eles dormiam. Se matou em seguida com um tiro na cabeça.

E foi assim que fui promovido a porteiro noturno.

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.