primeira crônica impossível (útil como usar um garfo pra tomar água)

Masso Otembra
Revista Mormaço
Published in
3 min readFeb 28, 2022
pano pintado de vermelho. na parte superior, há escrito “leo não consegue mudar o mundo”. no centro, um coração anatomicamente adequado. acima dele, as palavras “luzes” e “abismo”. irradiando da parte inferior do coração, na diagonal saindo do centro para a esquerda a palavra “inconformado”, e na diagonal saindo do centro para a direita a palavra “solitário”
Leonilson. Leo não consegue mudar o mundo, 1989

Someter o asco é um afazer que me tem rondado a cuca. Mas o asco ao quê, o asco a quem. Sometê-lo de que forma, sob a forma de uma carta, de uma igreja, de um espadim? Não sei. A carta periga-me cortar na hora da dobra, a igreja dá no risco de me vestir o hábito ou mexer com essas coisas pode dar facilmente no inferno; o espadim eu nunca nem vi um, só me ocorreu a possibilidade e pela devoção que tenho a ela (a possibilidade) escolhi fazer o registro. Podia enviá-lo no formato de uma bomba. Mas não sei. Isto de dirigir as coisas que nem fazem com um míssil… é perigoso, isto. Quem sabe do trajeto? Se no meio do caminho vai parar na onde-o-vento-faz-a-curva e com pouco vira um bumerangue e se revolta contra mim, responsável por dar o primeiro empurrão? De todo modo também nunca vi um bumerangue. Vai ficar o asco sem ser sometido até que me ocorra melhor ideia.

Isto de asco é uma palavra nova que aprendi num dia desses com Tiodora. Tiodora tem um costume que é de guardar arrepios no bolso. Arrepio que eu falo é aquele que chega na gente de repente e no de repente mesmo treme o nosso corpo todo. Quando isso lha acontecia, Tiodora passava a mão esquerda no braço direito desde o ombro até a ponta dos dedos e em seguida passava a mão direita no braço esquerdo desde o ombro até a ponta dos dedos. Agora o arrepio estava nas mãos dela. Então ela pegava e fazia com as mãos como estivesse moldando uma bolinha de barro. Aí sim guardava o arrepio no bolso. Porém naquele dia Tiodora foi acometida de um arrepio e passou a mão esquerda no braço direito desde o ombro até a ponta dos dedos e em seguida passou a mão direita no braço esquerdo desde o ombro até a ponta dos dedos, e com o arrepio na mão fez dele uma bolinha e jogou longe. Eu falei: ué.

Ai esse me deu um asco [ela diz].

Então eu entendi que asco é o que a gente joga fora. A gente aprende uma palavra é assim: vendo o efeito que ela faz no mundo. Isso foi o quê, uns três meses depois de ter aparecido aquela bolona azul clara maior deque uma casa voando em cima da praça. Está pairando até hoje, quem quiser vá lá ver. Chegou aqui até agora ninguém sabe como, nem ninguém ainda sabe o que é — e quem tentou desistiu da busca.

Igual eu hoje que desisti de fazer qualquer coisa com esse asco porque não sabia pra quem mandar. O perigo é eu, de tanto guardar, criar feição e achar que ele é meu, e depois achar que é a coisa mais feia e passar a dissimular e ficar dizendo que não é meu não, não sei nem o que é, e quando alguém me perguntar eu vou querer-me livrar desse asco e sometê-lo a qualquer uma pessoa errada que nem vai ter nada a ver com isso, e quem realmente tem não vai saber de meu asco nem o cheiro.

Assim não pode. Até mesmo o asco da gente tinha que ser criterioso. Uma hora eu faço uma coisa, mas, hoje não, que hoje eu quero estar só. Também outra hora pergunto se alguém sabe como é que se livra de um asco. Hoje não, hoje não – que quero fazer outras coisas.

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