Publicar não é preciso
Às vezes eu paro e penso: será que eu estou escrevendo para ninguém ler?
Que assim hoje seja, não me assusta tão mais quanto na antes: na adolescência, a literatura me apareceu como uma tentativa de me fazer restar na malha escorregadia do tempo; eu queria muito que as palavras ficassem, que as as ideias não se perdessem. A palavra escrita conseguia abrir um rasgo na extensão corrida dos dias, o que me ajudava a desacelerar um pouco o frenesi da minha cabeça ebuliçosa. Tratava-se este de um a favor da dureza, portanto, mas não num atestado contra a mudança — antes disso, era propriamente uma celebração da mudança, uma marcação da mudança, um grifo sobre o que foi antes de que viesse a deixar de ser. Através do contraste se marca a diferença, e a constatação do que eu fui me permitia não ser: aquilo lá já estava a salvo, já fora escrito, haurido, lambido até o fim.
Dessa maneira, a publicação deixou de parecer urgente. Se era a alteridade o meu interesse, ela se disponibilizou para mim numa espécie de diálogo soliloquente — a psicanálise se lambuza por essas veredas, mas eu não sou psicanalista –, sem o bafo de uma segunda pessoa. Por muito tempo, fugi da publicação como o diabo foge da cruz. Aos 15 anos, as nossas transformações são velozes e com velocidade conseguimos nos desfazer delas; eu não me sentia pronta, me via crescer rápido demais e detestar por conseguinte tudo o que era antes de crescida. Mas eu queria que os meus livros seguissem independentemente de mim, apesar de mim, sem se aproveitar da seiva nutritiva e caudalosa que escorria do meu umbigo. E por esta razão agora eu publico (não sei se já estou pronta, mas publico mesmo assim): Cães manifesta todo o frescor e toda a fragilidade de uma primeira publicação — e não por isso deixa de ser uma boa apresentação, eu acho. Tomara que alguém o leia!
Júlia Grilo é romancista, ensaísta e cronista. Publicou “Cães” pela Editora Penalux em 2020.
