quantas vezes a autora usou a palavra “van” nesse texto?

Ceci
Revista Mormaço
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4 min readJul 14, 2022
Arte: Jacques Kleynhans

no dia 19 de junho, das quatro às oito da manhã, me encontrei dividindo uma van com outras pessoas. percorríamos o trajeto são luís-barreirinhas, composto por 257 quilômetros, 514 buracos, 32 sobressaltos e 1 parada. lá pelas seis da manhã, o motorista, um homem de idade e estilo indecifráveis (o topo do cabelo estava pintado de laranja bem clarinho e o resto branco, um estilo agnès varda dos trópicos), parou a van em um estabelecimento multifuncional, deixou correr a porta, nos libertando temporariamente, e gritou sem estabelecer contato visual com ninguém: “paradinha para o café”.

ficamos todos sentados por um tempo, observando aquele homem rumar lanchonete adentro, decidido a se sentar em determinado banco e falar com determinadas duas pessoas. uma atrás do balcão e outra escorada nele.

movimentei meu corpo ligeiramente no assento para conseguir uma estimativa do nível de preenchimento da bexiga, o qual não julguei alarmante, e optei pela inércia. os demais passageiros foram saindo da van em ondas. um casal, depois duas amigas, depois uma jovem avulsa, depois outra jovem avulsa. um homem que se parecia com alguém, mas não me ocorreu quem. uma mulher que parecia uma ex-aluna minha 20 anos mais velha.

a segunda jovem avulsa voltava do banheiro quando viu uma van indo embora. sem pensar nenhuma vez, saiu correndo em direção ao carro com um dos braços pra cima¹. quando chegou mais perto, estacou como se seu corpo estivesse ligado a uma tomada lá dentro do banheiro e naquele ponto o fio esticou, desconectando plugue. olhou panoramicamente. avistou a nossa van. me avistou dentro da nossa van, olhando pra ela. foi andando a passos constrangidos para a nossa van. quando entrou, eu senti que precisava falar alguma coisa pra aliviar o peso que ela carregava nas costas.

— também… as duas vans são iguaizinhas!

ela me olhou demoradamente. não tinha como as duas vans serem mais diferentes. a nossa era branca e lisa, a outra, cinza claro com um adesivão colorido da empresa turística que realizava o fretamento. em um rápido cálculo mental, concluí que não me restava nenhuma alternativa para remendar a situação. a única saída possível seria falar “juro por tudo que é mais sagrado que eu não estava sendo irônica”. mas por algum motivo inexplicável as interações sociais no brasil tomaram um rumo que baniu a possibilidade de alguém usar essa frase sem passar a impressão de que precisa ser interditada. achei melhor deixar como estava. me calei. nos calamos. ela sentou carrancuda.

entrou uma das amigas. a outra estava pagando um café quando o motorista decidiu que nos precisávamos sair dali imediatamente. a outra gritou “espera eu!” e andou-fingindo-que-estava-correndo com o café na mão em direção à van.

o motorista entrou na van e disse algo que agnès varda, mesmo em seus dias mais mal-humorados, nunca diria: “eu já estava quase voltando pra são luís e você pagando o café”. ele mesmo quebrou o silêncio com mais uma frase indelicada. uma profecia macabra: “segura bem o café aí que daqui até lá é só buraco”. não tinha como segurar bem o café, ele sabia disso, eu sabia disso, a coitada com o café na mão sabia disso. é como jogar um barco no mar e esperar que ele não balance com as ondas. a mulher fez o que estava ao seu alcance no momento: esticou o braço de modo a segurar o copinho de plástico transparente (já parcialmente derretido e diluído no café) o mais distante possível do seu corpo. o cenário mais otimista que poderia ser esperado ali era o de escorrer café pelando somente pela lateral da sua mão. foi o que aconteceu. já tinha perdido metade do café quando decidiu virar tudo de uma vez, dando fim ao seu suplício, durante um microtrecho de calmaria da estrada. foi um erro fatal. ao braço queimado somou-se a língua. mas não se deu por vencida, iria dar a última palavra. falou alto o suficiente para o motorista escutar lá na frente, só que não tão alto a ponto de parecer que falou alto para o motorista escutar lá na frente: “mas tava bom o café”.

um abismo separa a jovem avulsa, que se enganou com a van, da jovem do café. a segunda está disposta a ir até as ultimas consequências pela manutenção da sua dignidade. vai cair lutando, enquanto a primeira desobriga a si mesma de qualquer compromisso com uma imagem pública, repetindo internamente o mantra “nunca mais vou ver essas pessoas na vida mesmo”.

¹o gesto automático de levantar os braços em desespero por um transporte público que se distancia no horizonte provavelmente é um comportamento mimético adquirido do contato do ser humano com cachorros, que têm por hábito levantar o rabo quando querem se encontrados pelo bando em áreas de vegetação densa.

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