reflexo

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
2 min readMay 25, 2022
(foto: acervo pessoal)

No primeiro instante, não te quis. No segundo, fiz de você meu espelho.

Seus olhos (agora meus olhos) me olharam e sua boca (agora minha boca) cantarolou, com avidez e segurança, elogios, planos e sensações do mais alto escalão. Pertencer e caber nas suas palavras (agora minhas palavras) era um quadro bonito em tons pasteis. A palavra “egoísmo” foi escrita de preto no canto inferior esquerdo, mas passei tinta branca por cima. No direito, vi “vaidade” com a mesma caligrafia e repeti o procedimento. Para que nenhum crítico de arte tivesse dúvidas, desenhei “CONFORTO” bem no meio da pintura.

amor-espelho
o familiar
reflexo (quase?) perfeito

Nós refletimos também nossa própria nudez, como Adão e Eva ao comerem o fruto proibido no Éden. E depois,
lá foi você
para outro canto,
ser outro objeto para outra pessoa. Meu próprio espelho virando as costas para mim, levanto no bolso não só o que refletiu mas tudo que achei que eu fosse.

Fiquei à mercê da minha imaginação. Sem imagem, sem reflexo, sem visão.

Audição, tato, paladar e olfato: 4 cavaleiros inúteis e sem treinamento para gerirem essa crise.

Se eu consigo ser isso e tudo ao mesmo tempo
(eu me dizia e você me disse)
por que você não ficou?

Perdi você, amor. Além: perdi o meu amor.
Não mais o mesmo reflexo, um outro ângulo: o infamiliar. Das Unheimliche.

No oculto, a possibilidade de ser querida sem necessariamente querer pulsava sem força. Do mesmo jeito, a ideia de ser a você que você (nós) via(mos) era um cadáver se decompondo.

Sabia que na Inglaterra da era vitoriana, quando um morto era velado, todos os espelhos da casa eram cobertos? Acreditavam que a paz do defunto ficaria presa dentro do objeto.

Não tive esse cuidado.

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