ROSA, MARGARIDA E ÍSIS: BUQUE DE FLORES

Beatriz Trimer
Revista Mormaço
Published in
7 min readJun 28, 2022
Foto de Beatriz Trimer

Hilda era o nome da peça. Rosa e Margarida esperavam há uma hora na fila, que fora organizada entre paredes removíveis. Nelas, a expografia impunha diversos lambes com frases, textos e poemas de resistência. Isso incomodava Rosa. Ela remexia-se e, assustada, inspecionava o que ocorria à sua volta. Crianças corriam. Os pais conversavam. Casais aos beijos. Turistas orientavam-se com os seguranças. E Margarida não ajudava, ficava lendo os textos nas paredes, e andava em círculos, e tagarelava sobre o que havia lido nos jornais.

— Por que você tá nervosa?
Em um ano de convivência Rosa desenvolveu a habilidade de se desligar. Margarida falava muito. Em resposta, e com a desconfiança que o desentendimento e distração de Rosa era proposital, Margarida continuava chamando-a:
— Amor? Rosa!? Amor!
Ficava assim até se cansar, então, abria a boca para sair sua voz fanha, proposital, e dava pequeno chocalho no braço era a forma mais eficiente de chamar atenção de Rosa:
- Fala comigo, por favor!!!
Rosa detestava quando Margarida fazia isso.
— O que!?
— Você ouviu o que eu te falei?
— Sim.
Margarida também detestava algumas mentiras de Rosa.
— Então, me responde.
— Responder o que?
— Viu!? Você não me ouviu. Tava fingindo de novo.
— O que você perguntou?
— Onde é o banheiro?

As pessoas desciam as escadas de forma organizada e entregavam os seus ingressos para a funcionária, que as desejava boa peça. Depois, buscavam pelos lugares que julgavam serem os melhores e esperavam pelos apitos. Rosa estava cabisbaixa olhando os dois ingressos. Margarida chamou sua atenção quando pousou a mão gelada em seu rosto. Mostrou-lhe seus dentes enfileirados e começou a falar sobre algo que leu em alguma porta do banheiro. Enquanto isso Rosa entregava os ingressos para a funcionária, que as desejou boa peça.
As cadeiras eram desconfortáveis. Margarida teve dificuldades de se acomodar. Seu vestido ficava escorregando e suas pernas eram muito compridas para o pouco espaço entre as fileiras. Ainda colocou os pés encobertos pelo tênis preto sobre o encosto da cadeira à frente, ouvindo, logo em seguida, o pedido do funcionário para não fazer isso. Já Rosa não teve qualquer problema, logo que sentou abriu as pernas, ajeitou as costas e repousou a mão no colo quente de Margarida. Tampouco, não parava de olhar para as pessoas à sua volta, perdendo a represália que Margarida recebeu.
Alguns minutos atrasaram o espetáculo. Tempo suficiente para Margarida divagar sobre o nome da avó morta, contar quantas pessoas havia na plateia, comparar uma mulher com a colega de trabalho, contar de quando participava do teatro na escola e ainda falar de um livro que avaliou na editora. Rosa ficou aliviada quando os apitos soaram. Margarida falou mais um pouco sobre coisas irrelevantes. Rosa a respondeu pedindo que ela esperasse para falar depois da peça. As luzes da plateia foram apagadas, uma outra se acendeu no palco. Nele havia um homem.
A plateia iluminou-se novamente quando a peça terminou. A atriz principal fez um pequeno discurso de agradecimento:

— Ir ao teatro, hoje, é um ato de resistência.
Todo o público estava calado. Levantaram de suas cadeiras e aplaudiram os dois atores. Saíram devagarinho e só se ouvia o barulho dos passos em direção à rua. Na calçada, as vozes eram repostas nas bocas, nas quais, as primeiras palavras expressavam tentativas falhas de falar sobre Hilda. A peça foi excelente, nos pensamentos de Rosa, fez Margarida calar a boca. Enquanto pensava nisso, olhou para os próprios pulsos e viu as horas:
— Não vai dar para tomarmos vinho.
Margarida respondeu com um sorriso amarelo e sugeriu o Drosophyla.
A mesa em que foram instaladas era pequena, suficiente. Elas se ajeitaram, lado a lado no sofá, viradas para a porta principal. À esquerda havia dois moços, apaixonados. Mais à frente, ainda à esquerda, duas mulheres conversavam. Na direita um casal, cujo homem olhava à sua volta com cara de nojo, enquanto a mulher degustava uma bebida. Na frente destes, havia mais outro par, de homem e mulher, perdidos em suas trocas de olhares. Rosa ficou incumbida de escolher as bebidas. Margarida as comidas. Rosa observava as pessoas à sua volta de forma minuciosa, mas discreta. Já Margarida falava sozinha suas opiniões sobre os pratos oferecidos no cardápio plastificado.
— Amor, olha aquela mulher.
Margarida tirou os olhos do cardápio e virou-se abruptamente. Encarou a mulher sentada à sua esquerda, em frente ao casal de moços.
— Não agora, cabeção. E nem assim.
Margarida voltou o olhar à Rosa. Ria alto, exibindo sua goela e a língua tremendo, enquanto a outra bebia um gole da sangria e olhava para a mesa. As bochechas rubras queimavam o rosto de Rosa. Ela colocou a taça cuidadosamente ao lado dos guardanapos e olhava para a bebida enquanto dizia:
— Então, ela tá encarando a gente e o casal aqui do lado — apontou com a cabeça à sua esquerda — com cara feia.
Margarida analisou a situação minuciosamente e nem um pouco discreta. Primeiro olhou diretamente para a mulher, queimando-lhe a face com seus olhos castanhos e a testa torcida em descontentamento. Isso, o alvo de seus olhos virar-se de costas. Depois olhou para os dois moços, que riram olhando as duas. Em resposta, sorriam para Margarida. Depois que receberam os lábios cor-de-rosa, perfeitamente encurvados, expondo os dentes brancos, enfileirados e limpos de Margarida, saíram os dois para fumar. Margarida voltou a atenção de novo para a mulher, sozinha na mesa, ainda de costas para elas e servida de um novo copo de whisky. Margarida ainda passou os olhos curiosos sobre as outras pessoas, dentro e fora da sala, antes de retornar à atenção à Rosa. Rosa usava o telefone, escondendo-o ao lado da perna. Margarida suspirou, bebericou a sangria e engoliu alguns canapés enquanto esperava.
— Acho que ela está precisando de um amor — disse, quando percebeu que a luz do telefone foi apagada.
— O que?
— Observa bem.
Margarida secava os lábios com o guardanapo enquanto descia a taça em direção a mesa. Olhou para Rosa com atenção e continuou:
— O casal aqui à direita é um chato. O homem fica com cara de bunda e ela fica no celular e, claramente, enrolando para tomar aquele gin com tônica.
Margarida sorriu para o macho, que ouvindo com atenção o pronunciamento sobre si, manifestado pela voz fina, encarou as duas por alguns segundos. Margarida sabia que as bochechas de Rosa se enrubesciam, mas ela continuou olhando fixamente para o homem com os cabelos duros de gel. O homem desviou seu olhar para a companheira que fazia-se de desentendida. Margarida prosseguiu com sua análise:

— O casal mais do fundo, aquela moça não consegue ver. Tá de costas e no meio tem a porta os escondendo, tá vendo? O que ela consegue observar são só nós duas e os dois que estavam aqui do lado. E a gente tá um nojo. Sentadinhos um ao lado do outro. E sempre em contato físico. É, isso no caso dos dois.
Ela fez outra pausa e olhou para a jarra de sangria. Depois para as mãos de Rosa estendidas sobre a mesa.
— Bom, o nosso é o nosso. Você sabe. É inveja que ela tem.
— Inveja? Por que?
— Ou ela é homofóbica.
Margarida falou alto, fazendo com que o homem à direita virasse sua atenção à mulher sob julgamento. Em seguida ele mandou a que o acompanhava, acelerar para eles irem logo embora. Levantou, em seguida, e sumiu para a outra sala. A mulher de quem falavam olhou-as brava, voltou-se novamente de costas e tomou um novo gole de whisky. Pouco tempo depois também levantou e saiu. As duas caíram na gargalhada.
Tomaram alguns goles da sangria e pediram outra porção de canapés. Enquanto isso Rosa olhava a moça que comemorava o aniversário na sala oposta.
— Ela parece muito feliz — disse, com certa melancolia na fala.
Margarida não respondeu e chamou o garçom. Postando-o entre a aniversariante e a companheira, que passou a verificar de novo o telefone.

A noite foi passando. As conversas foram ficando alegres. As comidas vindo e indo. Jarras e mais jarras de sangria saindo. Os casais indo embora. Outros chegando. A noite ficando leve.
Era um pouco mais de duas horas da madrugada quando elas ficaram sozinhas na sala. Beijos aconteceram. Risadas e sorrisos estampados.
Já iam embora quando Rosa pediu água de torneira e um pudim de ovomaltine. E inventaram uma brincadeira, Margarida não poderia mais mexer os braços e tudo o que ela fosse ingerir seria dado por Rosa. Na primeira tentativa Rosa pegou um pedaço muito grande do doce e enfiou na boca de Margarida que, com as bochechas cheias, deixou-o escapar-lhe pelos cantos. Ela ria ao mesmo tempo que buscava conter a comida para trás dos lábios. Depois as duas puseram-se a gargalhar alto. Recuperada, Margarida pediu um gole d’água. Rosa ainda não parava de rir, porém, ainda com as mãos trêmulas, derramava a água na boca de Margarida, que escorreu pelo canto da boca e caiu entre seus seios. Outro ataque de risos veio de Rosa, sem que ela se movesse. Mais água caiu pelo seu decote, obrigando Margarida a empurrar o braço de Rosa. Jorrando o restante d’água no colo das duas. As risadas altas tomaram conta do barulhento bar e todos as olhavam sem entender. A brincadeira continuou, agora com Margarida servindo.

Ainda riam quando chegaram em casa, molhadas e meladas. Tomaram um banho e deitaram, nuas, sob o edredom.
O celular de Rosa despertou pouco antes das seis horas. Levantou-se e vestiu-se.
— Você não pode ficar mais?
— Não. Você sabe.
Uma mensagem de Ísis acendeu no telefone de Rosa.

--

--

Beatriz Trimer
Revista Mormaço

O orvalho se tece nas quintas-feiras. Na sexta faço croche. Viajo em ideias na segunda. A adubação nas quartas. Escrevo nos intervalos