Roteiro para o amor na velhice

Lucas Belo
Revista Mormaço
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4 min readJan 28, 2022
Obra “Homem guarda-chuva” , de German Lorca — Foto: German Lorca

“Ninguém usa mais papel, Cícero! A não ser, é claro, se for para jogar fora depois de usá-lo uma vez, não percebe? Você guarda todos os roteiros que leu nessa salinha mórbida, como se você fosse voltar a interpretá-los um dia, mas, querido, é preciso aceitar que você… nós não temos mais tempo para rever nada, quer dizer, eu me recuso fazer da minha velhice uma retrospectiva boba, cheia de memórias faz-de-conta só para amenizar o julgamento que tenho sobre a minha vida”.

Desde que me apaixonei por Elenice, sabia que esse seu jeito esclarecido seria o nosso fim. Não há opacidade para ela, também, não há mistério que não resolva, nem dilemas que não sejam bobos no seu ponto de vista. Quando eu tinha força nas pernas, conseguia suportá-la, porque andava para longe, de modo que trocar de cômodo nunca foi suficiente o bastante para mim. O tilintar das louças e a descarga do banheiro arranhavam meu coração feito lâmina. A juventude é a droga mais eficiente para o amor.

“Lá dentro estão meus personagens, sim, e eu cuido como se fossem roupas. Você sabe como as roupas custam caro, imagine quanto me custaria um Leônidas, um Arandir, um Creonte. Eu não posso jogar fora minha carreira inteira, ou vendê-los a preço de brechó só porque essa geração decidiu abolir os papéis. Foda-se eles, Elenice!”

Estávamos na sala fazendo outras coisas cada um, mas nada socorre as pessoas de sua natureza conflituosa, nem Manoel de Barros, nem Chico Buarque e Bethânia. Existe um magnetismo raro entre o pensamento hostil e a sede de gesticulação verbal, que só é possível conter quando você está na frente de um desconhecido. O íntimo é sempre revelador, como nosso apartamento empoeirado, atochado de móveis escuros e aroma forte de anis.

“Eu só estou dizendo que é inútil carregar consigo fardos e fardos de papéis como se eles fossem um puxadinho da sua memória. O que for para lembrar, não está longe, aparece em sonhos, no sexo, até lavando louça. Além do mais, a maior parte das peças estão disponíveis na internet. Ninguém precisa mais sacrificar um cômodo da casa para ser ator, basta um aparelho”.

Ela diz tudo com a boca amarga de gin, encostada no balcão da cozinha como se estivesse sentada sobre as minhas costas, superior e inalcançável, envernizada de pragmatismo e literatura psicológica. Em um determinado momento da nossa vida, senti como se eu fosse um ratinho de laboratório, encurralado por suas ideias e livros que a todo momento tentavam comprimir e transformar em diagnóstico cada movimento meu. O azar dela é que o teimoso só vive em lugar que o anula e onde a pirraça encontra solo fértil.

“Eu me apego às coisas, meu bem. E depois eu sofro porque não posso segurá-las para sempre. Lembra da pracinha? Você sabe como eu sofro por conta da pracinha e eu não tenho nem foto, nem texto dela. Eu sei que tinham ipês e tipuanas amontoadas, mas não lembro exatamente qual delas vinha primeiro, nem qual a parte do chão era de concreto e a outra de grama, é como se eu soubesse que existissem verbos, mas não fosse capaz de dizer nenhum. Registrar é importante, é o único método que nós encontramos de provar a existência no mundo. Sem isto, que agonia!”

Elenice foi até a janela, acendeu um cigarro e parecia inclinar o olhar em direção a pracinha, a qual eu me referia, serena como uma barragem, concatenando palavras cuidadosamente para não correr o risco de ser traída por elas — ela concordou quando eu disse uma vez que essa era uma característica de gente insegura, eu tinha razão, mas precisei conviver muito tempo com o desprezo também.

“Você viveria mais contente em uma sociedade comunista, sabe? Por essas bandas nada é nosso a não ser a nossa força. Mesmo se registrar em cartório, alguém pode te tomar. Eu compreendo, mas isso não me revolta mais, quer dizer, não vou dispor tempo e energia lutando contra um gigante. Pela idade você também não deveria. Elaborar abaixo assinado, participar de reuniões e assembleias na prefeitura, articular com meia dúzia de esquerdistas do bairro são, sem dúvida alguma, ações virtuosas, mas completamente inúteis, assim como ocupar um cômodo inteiro com seus roteiros. No fim, o shopping compra a pracinha para torná-la plataforma de publicidade e aquela companhia de teatro descolada que você ama, chama o garotão da temporada para interpretar os personagens que você mantém em cárcere. Cícero, você tem de deixar as coisas irem embora, principalmente a sua juventude”.

Feliz como quem arremata uma costura, minha mulher começou a cantarolar “Gota D’água”, que tocava discreta numa caixinha de som portátil do tamanho de uma pedra. Não era para me aborrecer. Tem gente que é melhor em gastar advertência, que em estimar o que foi dito, entretanto, ela não falaria mais palavra alguma a não ser se eu a atiçasse. Nem a canção triste tocando, nem a pracinha cheia de outdoors de redes fast food, nada provocaria um sentimento de solidariedade, porque, simplesmente, não tinham qualquer valor semântico para ela.

Peguei a chave do quartinho com os meus roteiros e desci para procurar uma praça que fosse pública.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.